Zemaria Pinto
Alegorias: personagens
As personagens de
O amante das amazonas são todas alegóricas, porém elaboradas com o senso
da paródia. Como num vaudeville.
Tomemos como
paradigma o próprio narrador, Ribamar de Sousa, que já identificamos como o
protagonista. Sua trajetória é inversa à trajetória dos imigrantes nordestinos
que vieram “fazer a Amazônia” na época da borracha. Estes, recrutados com
promessas de enriquecimento fácil, vinham em condições miseráveis, e se
tornavam escravos dos donos dos seringais, que lhes cobravam absolutamente
todas as despesas, desde a passagem de vinda até o indefectível quinino para
combater a malária. E como pagariam? Com o produto de seu trabalho, remunerado
de acordo com a produção obtida, chovesse ou fizesse sol. Esse valor estava
diretamente atrelado à cotação da borracha no mercado internacional. Euclides
da Cunha e Samuel Benchimol deixaram páginas memoráveis sobre o que Euclides
chamou de “a mais criminosa organização do trabalho”.[1]
Contrariando
todas as expectativas, Ribamar galga o posto de administrador do seringal Manixi
e, em Manaus, torna-se empresário de sucesso. Daí para a política é apenas uma
questão de tempo, tornando-se nosso herói senador da república. Uma
antialegoria ou, antes, uma alegoria paródica do imigrante nordestino que iria,
sobrevivente do seringal, povoar as favelas das cidades amazônicas.
O mesmo se dá com
Pierre Bataillon ou Coronel Bataillon – um título comprado. Cidadão francês,
Bataillon representa não apenas o capital estrangeiro, mas também o domínio
cultural da França à época. Antônio Ferreira, que o sucede como proprietário do
Manixi é uma personagem menor, do ponto de vista moral, um testa de ferro, mas
nem por isso menos representativo, pois é o símbolo do capital nacional
arruinado pela debacle. Seu patrão e financiador, o Comendador Gabriel da
Cunha, representa o poder do capital nacional, manipulando o jogo político, de
acordo com seus interesses.
Na disputa
política, Juca das Neves, inimigo do Comendador, é a representação do
empresário urbano que ruiu sob os escombros da cidade destruída. Mas é de sua
amizade com Bataillon, já falecido, que Ribamar se serve para aproximar-se dele
e soerguer sua fortuna – em proveito próprio, claro.
Zequinha Batelão,
como o chamavam à boca miúda, é uma alegoria da riqueza obtida sem maiores
incômodos, o que o leva a uma vida de aventuras, culminando com o seu
misterioso desaparecimento e todo o lendário construído em torno disso. Amante
de Maria Caxinauá, uma das lendas sobre o seu desaparecimento é que Zequinha
teria seguido uma índia Numa e, como os Numas, se tornado invisível. É ele, o
venturoso e aventureiro José Bataillon, o amante das amazonas que dá título à narrativa.
É importante
frisar a participação feminina na trama. Por enquanto, vamos falar das
“brancas”: Ifigênia, Constança e Glorinha. Meramente decorativas, as três
personagens representam a dimensão feminina de um mundo cruelmente masculino.
Ifigênia, a soberba dama europeia. Constança, a louca matrona amazônica. E
Glorinha, inexpressiva, quase idiota, impropriamente chamada de lambisgoia, o
que para ela seria um elogio.
As “índias”
Maria, Ivete, Júlia, Eudócia e Diana têm participação muito mais acentuada,
inclusive como alegorias. Maria Caxinauá é uma personagem sublime,
representação de todo o povo Caxinauá, é a própria encarnação da tragédia que
se abate sobre sua nação. Ivete Maacu é a representação da cabocla sedutora,
tão explorada, especialmente nas festas juninas – não são à toa as tatuagens em
vermelho e azul. Ribamar não economiza advérbios, verbos e adjetivos ao se
referir a ela:
Bruscamente,
incompreensivelmente, irrompendo com fúria e fulgor como Febo no horizonte –
alta, forte, violenta, vigorosa, portentosa índia maacu, como uma deusa, surge,
aparece, explode pela porta e tem os braços tatuados de vermelho e azul, e
quase nua, envolta em um manto de seda prateada e em chamas brilhantes como o
céu. (p. 55)
Diante dessa
visão, o indefeso Ferreira apaixona-se e, arriscando a ira do chefe, seu sogro,
abandona a inútil Glorinha e casa-se com aquela visão, alimentando a lenda de
que as caboclas amazônicas são insuperáveis no quesito sensualidade.
Júlia é representante
dos míticos Numas, só que visível e palpável. E fazendo jus à fama de sua
gente, cativa de guerra que era, armou vingança e encantou-se no invisível.
Eudócia, tia de
Benito Botelho, até por contraste com o próprio sobrinho, representa o
conformismo do povo, que se resigna à condição de semiescravo.
Diana, por outro
lado, ainda que pouco apareça, é a síntese da mulher moderna, que começa a
surgir ainda na primeira metade do século 20, com intensa participação social e
política e reivindicando um status de igualdade com o macho opressor.
Paxiúba, é o
“emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva” (p.
39). Quem define o Mulo é o próprio narrador, que o conheceu de perto. Uma
ameaça para os outros viventes, Paxiúba era um mero xerimbabo de Zequinha: “dormia
a seus pés, como um cão” (p. 79). Paxiúba representa a violência tão presente
nas relações amazônicas – sejam políticas, de trabalho ou de família.
Uma personagem com
um simbolismo muito forte é Sebastiana Vintém, manicure e fofoqueira profissional.
Barbadiana, representa a imigração estrangeira. A escolha tem um toque de humor
paródico, porque portugueses, japoneses, turcos e árabes – o principal
contingente migratório – acumularam, em um século de histórias, dezenas de
casos de sucesso, contra nenhum caso de família negra. O narrador ironiza: Sabá
Vintém “envelheceu próspera; almoçava e jantava na casa das madames” (p. 106).
Conchita del
Carmen e Fernandinho de Bará quase ficam de fora da trama, mas, já que
entraram, precisamos dizer que eles estão ligados pelos laços indissolúveis do
comércio sexual, sucesso em qualquer parte do mundo, em qualquer época.
Duas personagens,
pelo que têm de fascinantes, só adquirem pleno sentido quando vistos juntos:
Benito Botelho, filho de Isaura, cozinheira do Palácio Manixi, “o maior
intelectual amazonense” (p. 58), é levado ainda criança por uma varíola para
Manaus, o que o aproxima de Frei Lothar, uma espécie quixotesca – sensível e
enlouquecido. Benito e Lothar são um desafio à história oficial, onde os
intelectuais são cooptados – vide o “revolucionário” Álvaro Maia – e a Igreja,
apenas um braço do poder instituído. Benito mantém-se bêbado e íntegro, um
modelo de intelectual incorruptível, enquanto Frei Lothar segue fazendo sua
obra: “lutar contra a miséria, contra as doenças, contra a ignorância
amazonense...” (p. 163).
Neste ponto entra
Abraão Gadelha, jornalista e político, o protótipo do oportunismo nas duas
áreas. Uma personagem típica: o intelectual canalha. Gadelha “tinha sido Interventor
Federal” (p. 150), mas “o prestígio de seu padrinho Vargas entrava em declínio”
(p. 155). Álvaro Maia se enquadraria nesse perfil como uma luva, mas este não é
um roman à clef, logo, apague Álvaro Maia da sua lista dos suspeitos de
sempre.
Mas, numa
narrativa sobre o ciclo econômico da borracha, está faltando um elemento, um
mero coadjuvante, uma personagem chapada, sem nenhuma relevância: o
seringueiro. Ora, esta é uma ficção paródica da história, construída para
denunciar os delírios alucinatórios do capital e as alucinações delirantes proporcionadas
pelo capitalismo. Fosse uma narrativa naturalista, teríamos uma daquelas
personagens secundárias sonhando sonhos impossíveis, revoluções descabidas e
improváveis. Não, nesta narrativa paródica pós-moderna triunfa o grande
capital, como um eco da vida real. É por tudo isso que, representando milhares
de seringueiros, o narrador vai buscar em sua própria família, seu tio Genaro e
seu irmão Antônio, dois fracassados – ao encontro de quem ele viera viver a
ilusão de enriquecer no seringal, um Eldorado de papel. A página é antológica:
Pois
do lado de cá ficava como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família
constituída, dois machos protagonistas do enigma do meu silêncio e angustiosa
comunicação gestual, parentes quase mudos bichos, que salvavam a vida do
deserto por resmungos monossilábicos, viventes sem mulheres e amizades,
existindo na prisão geográfica onde só recordar era possível sob a pressão da
materialidade selvagem e da solidariedade de guerra: que de madrugada partiam
para a estrada como para a morte, impulsionados por uma ordem biológica. (p.
30)
Genaro e Antônio
não são alegorias. São apenas recortes, feitos de papelão ordinário, no
majestoso carro alegórico do seringal, onde se destaca uma enorme hévea – a
árvore que sendo mártir é mãe –, rodeada pela floresta exuberante, flores extravagantes
e animais exóticos. O distinto público leitor nem perceberá a presença deles.
Assista à
palestra, no YouTube, clicando aqui.
[1]
CUNHA, Euclides da. À margem da história. São Paulo: Unesp, 2019. p. 57.
Além
dos dois livros citados de Euclides da Cunha, que têm a Amazônia por tema,
recomendo o infelizmente raro livro de Samuel Benchimol Amazônia: um
pouco-antes e além-depois. Manaus: Calderaro, 1977.