Amigos do Fingidor

segunda-feira, 29 de março de 2021

Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas 8/9

Zemaria Pinto


Evolução: estrutura

A narrativa de O amante das amazonas é fragmentada, o que lhe empresta um ar de simpática anarquia. É que o narrador, Ribamar d’Aguirre de Sousa, anda ali pelos 80, 85 anos – o que se depreende do fato de que em 1897 ele era adolescente, e a história de estende até meados dos anos 1950. Como ele narra anos depois do fim dos acontecimentos, passamos facilmente dos 75 anos, o que justifica, ao concluir, ele dizer: “mas nesse ponto me falta o fôlego enquanto eu chego ao fim dessa minha história” (p. 163). Se lhe falta o fôlego, eventualmente, embaraça-se-lhe a memória. É compreensível.  Assim como em Riobaldo, seu solilóquio revela-se um diálogo: “é tempo de você partir, meu amigo, que eu fico aqui e tudo já vimos do que deveria ser visto” (p. 163). Mas esse amigo, claro, como em Riobaldo, pode ser apenas o caro leitor.

O primeiro capítulo – “Viagem” –, onde o narrador conta como chega à Amazônia, vindo de Pernambuco, prenuncia uma narrativa convencional. Não há como não lembrar da modorrenta viagem de Alberto, em A selva. Não por qualquer semelhança, mas exatamente pelas diferenças na dinâmica dos dois narradores.

No terceiro capítulo, o narrador introduz os Numas, uma tribo mítica, irreal, invisível: “eles não eram aparência, mas imanência” (p. 26). Assim como nos referimos aos caxinauás como representação das nações dizimadas, os Numas, seu contraponto, alegorizam a resistência idealizada. O Coronel Bataillon, com um paradoxal amálgama de desprezo e admiração, os chama de “novos Ajuricabas” (p. 81), numa referência ao guerreiro que preferiu a morte a submeter-se à coroa portuguesa. Ribamar, o narrador, é tão encantado com os Numas que os sublima sexualmente, no aparecimento de duas indiazinhas adolescentes: “aquelas meninas estavam ali excessivamente reais, muito mais reais e humanas do que os sediciosos machos seus irmãos (...) nus, de enormes falos escuros” (p. 31-32, p. 27). A explicação para esse contraste é metalinguística: “a poesia apronta um mundo, a prosa outro” (p. 32).

Mas os Numas habitavam para além da mente de Ribamar e no início da estação de chuvas de 1906, que começou, como todo ano, no ano anterior, promovem matança em larga escala, entulhando o Igarapé do Inferno com 300 corpos caxinauás e marcando a fogo o rosto de Maria.    

O capítulo oito – “Ratos” – ilustra a queda definitiva do seringal Manixi, invadido por milhares de ratos. A misteriosa índia Júlia os dizima de forma inusitada. Na sequência, ela envenena seu algoz, João Beleza, que matara sua mãe e a fizera amante. O seringal se finava ali. Júlia desaparece na floresta como “encantada” e o narrador tropeça nas próprias lembranças: “Ela estava uma moça, que isso aconteceu alguns anos depois não sei bem, não sei, não, não sei” (p. 92).

Até o décimo capítulo – “Perdida” –, a selva amazônica destaca-se, com o seringal Manixi e o palácio de mesmo nome ao centro. O capítulo seguinte, apropriadamente intitulado “Ribamar”, introduz o narrador como protagonista – o que ele anunciara ainda no início: “todo este livro é a confissão da minha vida” (p. 12); ou “pois que esta narrativa vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Sousa, aquele adolescente que eu era” (p. 16). Daquele ponto em diante, já o dissemos, Ribamar sai das sombras para o proscênio. A transição é representada pela debacle da borracha e a ida de Ribamar do Manixi para Manaus, onde se tornaria empresário e político influente e poderoso.

O capítulo dezessete – “Rua das Flores” – tem uma relevância especial no desenvolvimento da trama, representando quase uma digressão, e o quase vai por conta de um fio que une a rua ao seringal; mas vamos deixar esse fio para a descoberta do leitor. Importa é que Conchita del Carmen, a dona da rua, e Fernandinho de Bará, espécie de administrador da rua, são símbolos dos poderes instituídos: Conchita é uma imperatriz em miniatura, enquanto De Bará é nomeado como prefeito pelo narrador. E como já dissemos antes, esse poder emanava da atividade que eles exerciam: o comércio sexual.  

O fechamento da narrativa obedece à regra clássica das obras fechadas: nenhum ponto fica sem seu respectivo nó. Desvendam-se o misterioso desaparecimento de Zequinha, bem como o sumiço de uma fortuna em libras esterlinas, propriedade do patriarca Bataillon, pela qual a doce Maria fora torturada e quase morrera.

A simbologia com que o livro se estrutura é clara: os dez primeiros capítulos, passados na região do seringal, representam o apogeu econômico da borracha; nos treze capítulos seguintes, quando a narrativa redireciona-se para Manaus, têm-se a representação da decadência, que iria ensombrar a cidade pelos seguintes cinquenta anos.

 

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