Zemaria Pinto
Evolução: estrutura
A narrativa de O
amante das amazonas é fragmentada, o que lhe empresta um ar de simpática
anarquia. É que o narrador, Ribamar d’Aguirre de Sousa, anda ali pelos 80, 85
anos – o que se depreende do fato de que em 1897 ele era adolescente, e a
história de estende até meados dos anos 1950. Como ele narra anos depois do fim
dos acontecimentos, passamos facilmente dos 75 anos, o que justifica, ao
concluir, ele dizer: “mas nesse ponto me falta o fôlego enquanto eu chego ao
fim dessa minha história” (p. 163). Se lhe falta o fôlego, eventualmente,
embaraça-se-lhe a memória. É compreensível. Assim como em Riobaldo, seu solilóquio
revela-se um diálogo: “é tempo de você partir, meu amigo, que eu fico aqui e
tudo já vimos do que deveria ser visto” (p. 163). Mas esse amigo, claro, como
em Riobaldo, pode ser apenas o caro leitor.
O primeiro
capítulo – “Viagem” –, onde o narrador conta como chega à Amazônia, vindo de
Pernambuco, prenuncia uma narrativa convencional. Não há como não lembrar da modorrenta
viagem de Alberto, em A selva. Não por qualquer semelhança, mas
exatamente pelas diferenças na dinâmica dos dois narradores.
No terceiro
capítulo, o narrador introduz os Numas, uma tribo mítica, irreal, invisível:
“eles não eram aparência, mas imanência” (p. 26). Assim como nos referimos aos
caxinauás como representação das nações dizimadas, os Numas, seu contraponto,
alegorizam a resistência idealizada. O Coronel Bataillon, com um paradoxal amálgama
de desprezo e admiração, os chama de “novos Ajuricabas” (p. 81), numa
referência ao guerreiro que preferiu a morte a submeter-se à coroa portuguesa. Ribamar, o narrador, é tão encantado com os Numas que
os sublima sexualmente, no aparecimento de duas indiazinhas adolescentes:
“aquelas meninas estavam ali excessivamente reais, muito mais reais e humanas
do que os sediciosos machos seus irmãos (...) nus, de enormes falos escuros”
(p. 31-32, p. 27). A explicação para esse contraste é metalinguística: “a poesia
apronta um mundo, a prosa outro” (p. 32).
Mas os Numas
habitavam para além da mente de Ribamar e no início da estação de chuvas de 1906,
que começou, como todo ano, no ano anterior, promovem matança em larga escala,
entulhando o Igarapé do Inferno com 300 corpos caxinauás e marcando a fogo o
rosto de Maria.
O capítulo oito –
“Ratos” – ilustra a queda definitiva do seringal Manixi, invadido por milhares
de ratos. A misteriosa índia Júlia os dizima de forma inusitada. Na sequência,
ela envenena seu algoz, João Beleza, que matara sua mãe e a fizera amante. O
seringal se finava ali. Júlia desaparece na floresta como “encantada” e o
narrador tropeça nas próprias lembranças: “Ela estava uma moça, que isso
aconteceu alguns anos depois não sei bem, não sei, não, não sei” (p. 92).
Até o décimo
capítulo – “Perdida” –, a selva amazônica destaca-se, com o seringal Manixi e o
palácio de mesmo nome ao centro. O capítulo seguinte, apropriadamente
intitulado “Ribamar”, introduz o narrador como protagonista – o que ele
anunciara ainda no início: “todo este livro é a confissão da minha vida” (p.
12); ou “pois que esta narrativa vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de
Ribamar de Sousa, aquele adolescente que eu era” (p. 16). Daquele ponto em
diante, já o dissemos, Ribamar sai das sombras para o proscênio. A transição é
representada pela debacle da borracha e a ida de Ribamar do Manixi para Manaus,
onde se tornaria empresário e político influente e poderoso.
O capítulo
dezessete – “Rua das Flores” – tem uma relevância especial no desenvolvimento
da trama, representando quase uma digressão, e o quase vai por conta de um fio
que une a rua ao seringal; mas vamos deixar esse fio para a descoberta do
leitor. Importa é que Conchita del Carmen, a dona da rua, e Fernandinho de
Bará, espécie de administrador da rua, são símbolos dos poderes instituídos:
Conchita é uma imperatriz em miniatura, enquanto De Bará é nomeado como
prefeito pelo narrador. E como já dissemos antes, esse poder emanava da
atividade que eles exerciam: o comércio sexual.
O fechamento da
narrativa obedece à regra clássica das obras fechadas: nenhum ponto fica sem
seu respectivo nó. Desvendam-se o misterioso desaparecimento de Zequinha, bem
como o sumiço de uma fortuna em libras esterlinas, propriedade do patriarca
Bataillon, pela qual a doce Maria fora torturada e quase morrera.
A simbologia com
que o livro se estrutura é clara: os dez primeiros capítulos, passados na
região do seringal, representam o apogeu econômico da borracha; nos treze
capítulos seguintes, quando a narrativa redireciona-se para Manaus, têm-se a representação
da decadência, que iria ensombrar a cidade pelos seguintes cinquenta anos.
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