Zemaria Pinto
Bateria: paródia e metalinguagem
Em O amante
das amazonas, a paródia se estrutura em uma narrativa sem precedentes na
literatura sobre o período da borracha, quebrando paradigmas institucionalizados,
especialmente em relação ao Realismo/Naturalismo. Citamos antes As folias do
látex – assim como Márcio Souza, Rogel Samuel ousa rir do empolamento e
seriedade como o período é visto enquanto tragédia. Porque este é o lado oposto
da questão. Mas não é apenas a oposição cômico-trágico que está em tela: é um
discurso dissonante do discurso oficial, mostrando que a história pode ser
contada de outra forma. E essa outra forma escolhida por Samuel é a contramão
do discurso consagrado.
O amante das
amazonas contempla narrar as histórias de
personagens que não nos enchem de cuidados, embora alguns nos causem repulsa –
estes são exatamente aqueles que, literários, são intertextos de narrativas
ditas sérias, como Paxiúba e João Beleza. Assim, a obra não é paródia de um ou de
outro livro: é paródia de uma maneira de ver e de fazer literatura.
A fragmentação da
narrativa é parte do procedimento paródico também, uma vez que contraria o
padrão convencional da literatura sobre o período, cuja fábula, a despeito dos
movimentos temporais, pode ser montada linearmente.
De outro lado, o
inegável caráter metalinguístico da narrativa acentua a sua qualidade paródica,
pois amiúde confronta o leitor com a própria carpintaria do trabalho.
E
naqueles mesmos dias ocorreram grandes fatos em outros lugares e horas,
históricos e decisivos para o sucesso desta ficção e que relatarei no momento
oportuno, mas que para tanto ainda tenho de revelar surpresas de muitos outros
ocorridos. (p. 46-47)
No teatro,
chamaríamos a esse procedimento de distanciamento. Em outras ocasiões, o
narrador olha nos olhos do leitor:
O
leitor não dará crédito ao que que vou narrar, pois eu vi prodígios que ainda
agora me surpreendem. (p. 86)
A metalinguagem
serve-se também do humor, instaurando insólitos paradoxos:
Esta
é apenas uma obra de ficção, e portanto mentirosa, dentre as várias que há na
literatura amazonense (...) Todos os fatos, aqui expostos, foram realidades
notáveis e aconteceram realmente para a minha imaginação. (p. 88)
Em um bom
desfile, não pode faltar o recuo da bateria, momento em que a bateria
literalmente estaciona, e alas que estavam atrás dela passam à frente. O recuo
é mais que um preciosismo: é uma transição no desfile, marcando a passagem para
a evolução final. Em O amante das amazonas, essa transição é marcada
pelo capítulo doze – “Manaus” –, em que o narrador, caminhando por uma cidade
arrasada, sente que a ama, e, por isso mesmo, pode reerguê-la. Trabalhando no
icônico Armazém das Novidades, em troca de comida e alojamento em um
úmido porão, Ribamar de Sousa inicia ali, 15 anos após o início dos fatos
narrados, a sua trajetória vitoriosa.
Eliminando a
distância entre realidade e imaginação, o autor esfarinha a muralha que separa
história e ficção – e o faz com o uso cirúrgico da paródia e da metalinguagem
ditando o ritmo e a cadência da narrativa.