Zemaria Pinto*
Do grupo de escritores que gravitou em torno do Clube da Madrugada, Arthur Engrácio foi dos poucos a se dedicar somente à prosa de ficção. Foi dos poucos também a enveredar pelos tortuosos e nem sempre compensadores caminhos da análise literária, onde se peca pelo que se diz e, principalmente, pelo que não se diz. Depende da perspectiva de observadores e observados.
Mas numa e noutra atividade, Engrácio foi, sobretudo, honesto. Sua prosa é simples, objetiva e direta. Se fosse classificá-lo em uma escola, para satisfazer a sanha dos que não conseguem ver a literatura além dos quadros cronológicos, diria que ele é um naturalista tardio, embora o seu universo, centrado especialmente no interior amazônico, comporte, por isso mesmo, classificações mais ousadas.
A unidade da obra de Engrácio deriva de duas grandes vertentes: a regionalista e a mítica, sendo a primeira fruto da observação direta da vida do homem do interior da Amazônia, e a segunda decorrente da aceitação do universo mítico primitivo desse mesmo homem. Ao refundi-las, Engrácio pratica um realismo fantástico, onde o boto, a boiúna e a mãe-d’água transitam sem causar espanto entre a escória desvalida dos grotões amazônicos.
A propósito de Histórias do Submundo, o livro com que Engrácio estreou em 1960, Márcio Souza observa que “eram 128 páginas desiguais, unidas apenas pelo rancor”. O mais recente livro de Engrácio, A Vingança do Boto, de 95, confirma essa tendência: o rancor faz parte do seu estilo. Engrácio constrói uma literatura de tons fortes, por vezes desagradáveis, denunciando a exploração a que o homem do interior amazônico é submetido desde sempre, sem nenhuma preocupação em agradar a paladares mais sensíveis.
Apesar de original, e de manter uma constante unidade temática, Engrácio nunca foi um inventor de formas, mas foi, sem dúvida, um desbravador dos caminhos da literatura regionalista que se pratica hoje no Amazonas. O professor Marcos Frederico, ao referir-se a Estórias do Rio e à importância histórica de Arthur Engrácio no contexto da literatura amazonense, diz que “a prioridade à Amazônia não é regionalismo inconsequente. Trata-se de assumir uma identidade que, durante os anos, foi massacrada e relegada a um papel secundário”, para arrematar: “a imagem que os contos de Arthur Engrácio transmitem é exatamente esta: a dimensão da Amazônia. Mas não somente a dimensão geográfica. O que Engrácio focaliza, em sua prosa precisa, é principalmente o homem amazonense em sua dimensão maior”. O homem natural, com todas as suas inconveniências e idiossincrasias, sem maniqueísmos: humano, demasiadamente humano.
Encerrando um ciclo na literatura amazonense, sem deixar herdeiros à sua altura, Arthur Engrácio lega-nos um romance inédito, São José do Uruá - Um Mergulho no Mundo Mágico da Boiúna. No dia 16 de abril, Engrácio completaria 70 anos. Há 3 anos, ele surpreendeu-me com um poema para ser publicado nO FINGIDOR: era uma faceta inédita do Jacaré, como os amigos o chamavam na intimidade. O poema homenageava o amigo Ernesto Penafort, falecido. Trocando os nomes, numa paráfrase elegíaca, concluo, citando o primeiro verso daquele poema: noutros tempos, Arthur, eras futuro!
*Publicado no Suplemento Literário Amazonas, logo após da morte de Arthur Engrácio, dia 02 de abril de 1997.