Amigos do Fingidor

domingo, 6 de junho de 2010

Filhos da várzea – Verdade & Arte


Zemaria Pinto*


A primeira edição de Filhos da várzea veio à luz somente 18 anos após o lançamento do primeiro livro de poemas de Anibal Beça, Convite frugal. Se este era ainda um livro de adolescente (já não se fazem mais adolescentes como naquele tempo...), Filhos da várzea trazia um poeta maduro, curtido sob o alternante sol&chuva amazônicos, senhor das palavras e das melodias misteriosas que delas insistem em brotar.

Dividido em três partes, "Filhos da várzea", "Hora nua" e "Poemas dedicados", tendo os "4 cantares bacantes" como intermezzo, o livro nos revela o que viria a ser uma das marcas registradas do poeta: o domínio das formas - do precioso haicai guilhermino ao poema de metros livres e rimas brancas, experiências aproximadas às vanguardas em voga, sem deixar de dar uma piscadela marota com os sonetos construídos sobre a graça das redondilhas. Numa palavra, e sei que me repito, senhor de seu ofício: mestre.

A primeira parte, que dá título ao livro, compõe-se de dois sonetos introdutórios – um anunciando a escritura, outro expondo o tema – e nove poemas construídos de forma singular: seis estrofes, num crescendo aritmético de dois a sete versos, somando vinte e sete versos por poema. A presença enfática do número 9 não é gratuita ou ocasional, entretanto, pouparei o leitor de considerações simbólicas em torno do 9, chamando sua atenção apenas para a pele do poema, o observável logo na primeira visada: uma celebração da vida que insiste em brotar, mesmo no recôndito das várzeas:

Ele virá da luz e das águas,
das verdolengas águas de várzea.
Como a gárrula dos sábios prevê,
crescerá gaio à fímbria dos igapós.

Entre o místico, o mítico e o poético, Anibal arquiteta uma delicada peça de câmara, aparentada àquele Severino lá dos mangues do Recife.

A segunda parte do livro, "Hora nua", como o próprio título sugere, problematiza o tempo, uma das principais recorrências da poesia lírica. Mas não só o tempo é desnudado: o poeta reflete-se em cada poema, fazendo de cada circunstância um momento ímpar. No "Poema cíclico", por exemplo, que mereceu do saudoso professor Antônio Paulo Graça um ensaio minucioso e esclarecedor, ele celebra a passagem de seus 38 anos, identificando-se com o mito de Sísifo, condenado a rolar uma grande rocha até o topo de uma colina; ao atingir o ponto mais alto, a rocha rolava novamente para baixo, eternizando a punição:

Sem embargo
trago sempre no alforje
um fardo estrelas:
                                        sei-me estivador
                                        desse cais agônico:
                                        atarefado Sísifo.

Pois é esse o trabalho do poeta: buscar sempre o topo da criação em cada poema iniciado.

Nos "Poemas dedicados", ao lado das previsíveis homenagens anunciadas no título, encontramos poemas de rara extração, como "Primeira lição das facas", "O sono dos justos" e "Poema amargo para a cidade onde nasci e não pretendo morrer...". São trabalhos que transcendem a cronologia convencional, transformando-se em matéria de autêntica poesia, como um prêmio ao laborioso Sísifo: a arte consubstanciada em verdade, para muito além de seu tempo. Por isso, é mais que oportuna esta reedição de Filhos da várzea: não se trata de mero resgate de algo que foi, mas da afirmação de algo que é, perene, como o é a verdadeira obra literária.

*Apresentação à segunda edição de Filhos da várzea, editora Valer, 2002.