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quinta-feira, 10 de junho de 2010

Memórias-sócio-genéticas e as linguagens-culturas: construções essenciais da vida – parte 1

João Bosco Botelho

I. LINGUAGENS-CULTURAS E A GENÉTICA

1. A forma do corpo antecedendo a função

A estrutura do ensino teórico-prático da ciência médica transmite precocemente, mesmo podendo não ser percebido de imediato, que a integridade das partes do corpo humano (anatomia) antecede a função (fisiologia) exercida pelas mesmas partes. Dito de outra forma, como ponto de partida, para que o sujeito veja, são necessários os olhos; ouvir, as orelhas; respirar, os pulmões, entre outros exemplos. Na evolução dos estudos, o aluno entende que não basta só esse binarismo aparentemente simples. A complexidade é muitíssimo mais densa. Em todos os níveis, é indispensável que os segmentos específicos do sistema nervoso central e do periférico, que captam, interpretam e reagem às informações coletadas também estejam com as formas e funções normais.

Sob esse pressuposto, para que haja linguagem, igualmente, é indispensável que existam e estejam funcionando as várias estruturas específicas relacionadas à linguagem, nos órgãos dos sentidos, sistema nervoso central e sistema nervoso periférico.

2. Linguagens e culturas

Um dos aspectos mais fascinantes da ciência médica é compreender o processo que culminou no acervo, guarda e reprodução dos saberes por meio das linguagens orais e escritas, que culminaram nas culturas.

As incontáveis manifestações culturais, especialmente as que elaboraram e mantiveram as construções do pensamento subjetivo, para explicar a imaterialidade e o invisível aos olhos, — estritamente dependente da integridade da forma e da função do neo-córtex cerebral, só presente nos humanos —, em última análise, na ontologia, transformaram-se nas responsáveis pela manutenção da vida, desde o aparecimento do neo-córtex nos antepassados Homo.

Sob essa perspectiva, as linguagens e as culturas são tão importantes quanto as vidas. Como mágicas, simultaneamente, desde o passado distante, as linguagens e as culturas inseriram e retiraram múltiplos sentidos às coisas e às vidas, sempre impulsionando na busca das respostas.

Se partirmos do pressuposto óbvio de que, no corpo, a forma antecede a função (para ver o objeto, o sujeito deve ter pelo menos um dos olhos íntegro; para ouvir, uma das orelhas normal; para respirar, os pulmões), é válido teorizar que sem neo-córtex, a existência das culturas seria impossível. Nesse caso, caberia perguntar: seria possível a vida sem as culturas?

O maior obstáculo para validar essa teoria é a impossibilidade de estabelecer as correlações entre a forma e a função, no sistema nervoso central, em especial, no neo-córtex cerebral, nos níveis macroscópico (órgão), microscópico (célula), ultramicroscópico (molécula), atômico e subatômico. Dito de outro modo, se a observação empírica é suficiente para comprovar que o ser humano é capaz de falar e construir culturas se torna obrigatório existirem áreas anátomo funcionais, nos níveis acima mencionados, responsáveis por aquelas ações.

Os entraves aumentam na razão direta do avanço dos estudos na direção das menores estruturas. O desconhecimento fica mais denso a partir da molécula; portanto, ainda muito distante da unidade massa energia, no interior do átomo, objetivo maior da investigação científica.

Assim, sob a guarda da anatomia, no nível macroscópico, do sistema nervoso central (SNC) humano, é possível ensaiar através da paleopatologia, com razoável margem de acerto, a análise das impressões determinadas pelo cérebro nos antepassados distantes, na face interna dos crânios fósseis. As transformações sofridas na forma do SNC há milhares de anos, e, conseqüentemente, no modo como o cérebro se mantinha em contato com os ossos do crânio, estão relacionadas com a atual capacidade de falar e de escrever.

Alguns antropólogos afirmam que as moldagens endocranianas dos Pithecanthropus (Homo erectus, viveu há 300.000 anos) evidenciam, na superfície cortical, marcas das áreas identificadas, hoje, como responsáveis pela linguagem falada. Nesse sentido, é razoável pensar que esse antepassado humanóide já possuísse algum tipo de fala.

Os atos humanos de falar e de escrever estão unidos em complexa ponte envolvendo a maior parte do SNC com a vida de relação, principalmente, certos segmentos do córtex cerebral, identificados com a capacidade de imaginar e representar a ficção, isto é, o objeto não percebido na materialidade espacial pelo sujeito.

3. Similitudes entre ontogenia e filogenia: fuga da dor e busca do prazer

Até três semanas de vida intrauterina existem incríveis semelhanças macroscópicas entre os embriões de diferentes espécies. Essa similitude impôs o conhecido axioma da biologia, presente na literatura desde a segunda metade do século 19: a ontogenia segue, em determinado tempo, a filogenia, significando que existe na espécie Homo sapiens sapiens herança genética de outras espécies.

Parte importante desse axioma, comprovado no estudo dos genomas de várias espécies, que estabeleceu pontes entre o passado muito antigo, contido no cérebro oriundo da filogenia comum e o cérebro atual, resultante do processo evolutivo é a insubstituível polaridade entre a dor e o prazer.

4. Linguagens e culturas para fugir da dor e buscar o prazer

As determinantes atávicas para fugir da dor e buscar o prazer continuam sendo os elos mais fortes das ordens filogenéticas e ontogenéticas. Todos os sujeitos, de qualquer espécie, se organizaram com o objetivo de evitar a dor de qualquer natureza e ativar as fontes naturais produtoras de prazer. Entre as mais importantes produtoras de prazer estão a sexualidade e os alimentos, ambos acompanhados das muitas derivações simbólicas.

É lógico também admitir que as contradições provocadas nas lutas em torno da sobrevivência dos antepassados distantes, pouco a pouco, induziram modificações na forma do corpo e, especificamente, na do SNC, ajustando-o para promover novas formas e funções ligadas à sobrevivência. Aceitar o prazer e recusar a dor parece ter sido um ponto comum de incontestável relevância no projeto da vida humana no planeta, incontestavelmente atado às linguagens e às culturas.

O corpo humano tornou-se adaptado a essa determinante sócio genética. Incontáveis terminações nervosas periféricas, conectadas ao cérebro, mantêm todas as estruturas corporais atentas à dor e ao prazer. É possível afirmar, sem receio de estar cometendo exagero, que a vida humana não teria sido possível sem essa adaptação neurossensorial.

Dessa forma, como fruto do processo de humanização, o neo-córtex cerebral adicionou ajustes às emoções, sempre atualizados à temporalidade da luta pela sobrevivência, ligando indissoluvelmente a fuga da dor e a busca do prazer às linguagens e culturas.