Quem chega a Manaus vai logo querendo saber onde é que ele fica. Quer ver logo o lugar já célebre, onde as águas barrentas do Solimões e as retintas do Negro se encontram, se abraçam, gostam demais de ficar ali unidas, de margem a margem, não sabem viver sem a outra. Mas nada de muita intimidade. Não se misturam. O sábio Jari Botelho, querido meu de infância, dizia que os dois são é pávulos já demais. Assim explicava o fenômeno mágico da mão da Natureza.
Quando veio me ver aqui na floresta, que é dele também, o querido Gabriel Garcia Marquez, escritor colombiano, prêmio Nobel de Literatura, com o seu Cem Anos de Solidão, pediu para parar o barco quando passamos pelo Encontro das Águas. Enquanto sua mulher, a linda Mercedes, tirava fotos, ele fascinado só fazia dizer:
– Es um asombro!
O poeta peruano Arturo Corcuera, hijo de la selva, quando veio para o evento “A Poesia de Se Encontra na floresta”, em Manaus, maravilhado com o que via, fez um comentário que não esqueço:
– El nuestro Solimoens quiere entrar, tu rio Negro no le permite, él lo acarícia y sigue solo, transformado em el Amazonas.
Ernesto Cardenal, autor do genial Cântico Cósmico, que já três vezes veio passar temporada em Barreirinha, sempre ia para a proa do barco quando nos aproximávamos da boca do Solimões. E me chamava:
– Vamos al encuentro del Encuentro!
E o seu deslumbramento está gravado em comovidos versos do seu poema “Manaus Ressuscitada”.
Dona Clotilde Pinheiro, diretora do Grupo Escolar José Paranaguá, onde fiz feliz o meu curso primário, escreveu uma quadra, que não é lá essas maravilhas, mas que recordo contente toda vez que contemplo demorado a beleza deste milagre da Natureza:
Um lindo encanto te espera
lá no encontro das águas:
só divisá-lo já faz
esquecer todas as mágoas.
Já o poeta cearense Quintino Cunha, quando cruzou os olhos com as duas águas pávulas, estava enamorado de Maria, para quem foi logo escrevendo o poema que celebrizou o Encontro:
Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este
É o Rio Negro, aquele é o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe.
Como as saudades com as recordações.
(...)
Se estes dois rios fossemos, Maria,
Todas as vezes que os encontramos,
Que Amazonas de amor não sairia
De mim, de ti, de nós que nos amamos!!…
Pois não é que tem muito amazonense e até brasileiros lá das bandas do Sul, que pouco estão ligando para a beleza do fabuloso Encontro? É gente do governo acelerado, da indústria que refresca, da empreita audaciosa. Até das estranjas.
Estão querendo fazer (e vão acabar fazendo, se um valor mais alto não se levantar, bradando contra a ganância dos impiedosos) um porto portentoso, de tecnologia de índole humilhadora, bem no lugar onde reina, encantado, o famoso fenômeno que nem dona Ciência explica de uma vez por todas.
Os profissionais do desenvolvimento desumano sustentam, até rindo, que o Encontro das Águas fica lá bem longe. Do outro lado do rio, o turbilhão dos navios não lhe vai fazer dano algum. Que tudo está sendo muito bem calculado, com a perícia enganosa dos poderosos.
Os que só sonham com riqueza, dizem que paisagem não dá lucro, alma do capitalismo. Que turista tem muito mais coisa bonita para ver na floresta. Dinheiro vai correr solto, mais caudaloso do que a maravilha das águas. Haja caixas numeradas e bem remuneradas.
Mas, devagar com o andor, perdão, com o guindaste, porque pode emperrar. Também tem muita gente boa, em tanto canto do mundo, onde a notícia da agressão começou a chegar, que não está gostando nada desse porto, ali naquele pedaço tão lindo chamado das Lages.
Gente fina, de alta cultura, achando que não é próprio da decência e fere a inteligência esse tombamento feito pela direção estadual do órgão criado para proteger o patrimônio nacional, que se restringiu ao espaço fluvial da dança dos dois rios.
Ai, os tempos mudam, as alturas dos homens também. Vivos estivessem Rodrigo Melo Franco de Andrade, Lucio Costa, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, fundadores do IPHAN, sabedorias e dignidades profundas como as águas do Negro, tombariam contentes todo o entorno do Encontro, de margem a margem, barrancos adentro.
Obra nenhuma da engenharia humana ali pode ser construída, que magoe a alma daquela criação feliz da Natureza amazônica.
Empresário filho ingrato da floresta, diz rindo que paisagem tem já demais, está mas é sobrando. Os donos do projeto alardeiam que a Vale pode tudo, para a Vale tudo vale. Trata-se da gigantesca Vale do Rio Doce, que deixou de ser nacional.
Pois a história da esperança humana ensina que o povo pode e vale mais. Que sagrado deve ser o amor à Natureza. Grandes são os poderes da aurora, cuja luz adverte que é por essa e por outras que a Terra está se vingando das ruindades que andam fazendo com ela.
Eu, que não tenho lá essas grandes luzes, só advirto que todo cuidado é pouco, não convém ofender muito as águas. Com a vida delas não se brinca, não. Com fogo até que se pode brincar, porque se apaga. Mas com água não se brinca, não, porque ela alaga e, de repente, afoga.
Publicado originalmente no Blog da Amazônia.