João Bosco Botelho
A
epopeia para empurrar os limites da vida representou um dos principais fatores
para o aparecimento dos agentes da cura: da benzedeira ao médico; materializado
na Medicina como especialidade social.
Os registros da arqueologia mostram a
existência de práticas de curas, em comunidades ágrafas de caçadores‑coletores.
As craniotomias pré-históricas, realizadas há 10.000 anos e os vários ossos de
hominídeos achados apresentando sinais de fraturas consolidadas, são
inequívocas comprovações da ação intencional de alguns indivíduos do grupo para
abrir o crânio e imobilizar o membro fraturado.
Curar é
uma palavra mágica porque interliga o sagrado com o profano. O ato de curar
traz na sua essência o poder ou a sensação de vencer o maior de todos os obstáculos
da vida: a morte.
Este
é o ponto básico da principal resistência humana: vencer a morte inevitável!
O
fato está claro na mitologia grega. A data atual de comemoração do dia do médico
— 18 de outubro — corresponde à época em que era celebrada a festa do filho de
Apolo, Asclépio, o deus da Medicina grega.
Asclépio conquistou uma fama inimaginável. Tinha
a delicadeza do tocador de harpa e a fina habilidade agressiva do cirurgião. Todos
os doentes que não obtinham cura em outros oráculos procuravam os serviços
médicos de Asclépio. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as
ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Chegou a ressuscitar os mortos e
por essa razão foi fulminado por Zeus com os raios dos Ciclopes. Zeus matou o
filho de Apolo porque temia que a ordem natural das coisas fosse subvertida
pelas curas e pela ressurreição dos mortos.
O deus da Medicina grega deixou duas filhas — Hígia
e Panacéia — e dois filhos — Machaon e Podalírio. As duas mulheres se tornaram
famosas pelos conhecimentos empíricos ligados à higiene e às plantas medicinais.
Os dois homens foram reconhecidos como médicos guerreiros praticando a cirurgia
na guerra de Tróia, e foram citados nominalmente por Homero (Ilíada, 830).
Muitas esculturas e afrescos retratando
Asclépio e a sua filha Panacéia, feitos entre os anos 400 e 100 a.C.,contêm a
serpente enrolada em um bastão, como símbolo do renascimento.
O poder da divindade, artisticamente
construído, mantendo a primazia sobre a morte, foi revigorado pela gradativa
consolidação do cristianismo como religião dominante. O calendário cristão
manteve o dia 18 de outubro como o registro festivo para marcar o nascimento de
Lucas, o evangelista médico.
A
serpente de Asclépio se enrolou na cruz cristã e formou um dos mais belos sincretismos
religiosos da história. A primeira, símbolo da imortalidade embaixo da terra, e
a cruz como a representação do inatingível acima da terra, fecham o ciclo mítico
pendular entre o desconhecido situado acima da cabeça e abaixo dos pés do homem.
Ainda estamos angustiantemente longe de
compreender os mistérios da vida. Contudo, não é sem razão que os médicos
comemoram, muitos sem saber porque, o dia 18 de outubro como marco da
resistência à morte inevitável.