Amigos do Fingidor

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Antísthenes Pinto, uma apresentação 2/2


Zemaria Pinto
 
 
 
O Clube da Madrugada fora fundado com um ideal: ser um centro irradiador de idéias novas. Isto valeria para a política, a economia, as artes, enfim, para todas as manifestações do pensamento. Havia entre os jovens fundadores do Clube um desejo incontido de mudança. Antísthenes Pinto constrói sua obra poética sob esse signo – da experimentação e da busca do novo, tendo sempre em mente o axioma de Maiakovski: não há arte revolucionária sem forma revolucionária. As influências são as mais diversas, indo desde o surrealismo até a poesia concreta. Mas a principal marca da poesia de Antísthenes é a ironia com que ele traça a cartografia do mundo a sua volta, sem nenhuma autoindulgência, como no poema de abertura de Sombra e asfalto, de 1957, sua estréia em livro:

 

O meu patético olhar engole o longe:

– Escuro limitando com escuro

E quanto ao perto: cinza no cinzeiro

E o negro cão do tempo me mordendo.[1]

 

Ossuário, de 1963, foi o livro que motivou no crítico Assis Brasil, para definir o trabalho de Antísthenes, a idéia de “uma poesia de interesse visual, descarnada, limpa”[2]. Morando no Rio de Janeiro, publicando regularmente no lendário Suplemento Literário do Jornal do Brasil, quando ainda dirigido por Mário Faustino, Antísthenes elabora poemas austeros, ásperos, sem concessões, de onde a poesia brota quase imperceptível:

 

oblonga

     a

                noite

                           gasta-se

                                em

                              grilos[3]

 

Prêmio Prefeitura de Manaus, em 1976 – havia, há 28 anos, um Prêmio Prefeitura de Manaus de Poesia! –, Angústia numeral é o livro mais emblemático de Antísthenes, o que não significa o melhor. Aquela contenção de Ossuário explode, treze anos depois, em uma festa de palavras, onde o verso longo e delirante – ecoando Whitman, Maiakovski, Fernando Pessoa, ou mesmo o Mário de Andrade da Paulicéia desvairada – nos pega como um soco:
 

sejamos malucos embora usemos gravatas

e fiquemos sempre de cócoras.

A mudez é a arma que nos faz rir

do caótico sol da refrega.

 

Sejamos, também, interiorizados como os postes

e deixemos os cabelos cobrir-nos como lençóis.

Sejamos cães, cães pelo menos vinte e três horas

por dia e façamos da chuva

a ordeira companheira a suavizar nossa náusea.[4]

 

Este foi o primeiro poema de Antísthenes que li em livro. Estávamos em 1980, e eu o conhecia apenas dos jornais. Em menos de uma hora, já havia lido os 41 poemas de Angústia numeral e começava a relê-los, vibrando cada palavra:

 

Os guarda-chuvas abertos à rua

vertical e a lepra por baixo num euforismo

de canção.

As janelas caladas deixando o vento túmido

passar as suas patas ciclópicas

e o imenso monociclo levando para nenhuma parte

o homem de cabeça decepada

e as mulheres todas com o sexo

sangrando

cobrindo os olhos congestionados.[5]

 

Aqueles versos ensandecidos mostravam-me que as leituras da beat generation, em especial de Allen Ginsberg, bem como do paulista Roberto Piva, não eram vãs. Havia alguém muito próximo que dialogava com aqueles poetas. Era preciso conhecê-lo melhor.

O último livro original de poemas publicado por Antísthenes Pinto foi Curvas do tempo, de 1984. Editado por conta do próprio autor, o livro configura-se como um legado que o poeta teimava em nos deixar. Cada uma das faces de sua poesia múltipla está representada naquelas 70 páginas, que ainda se dão ao luxo de trazerem novidades, como o uso da música, marcada pelo domínio do metro popular, aliado à harmonia advinda das entonações perfeitas, como neste pastoril, de sabor levemente surreal:
 

Havia um pássaro em pânico

entre gardênias e Mirra,

foi bem cedo que a vi

com seus cabelos azuis

nessa campina de sono,

de vacas tontas de sol

e laranjas crepitando

como pombos na manhã.[6]

 

Mas estão também em Curvas do tempo os versos descarnados de Ossuário e os versos longos e arrebatados de Angústia numeral. Estão presentes os cães, os cães sempre presentes na poesia de Antísthenes. E também os ossos – as flores ósseas, o ósseo sol, o canto ossificado –, recorrências que se associam e se completam, nos quadros cáusticos que a inquieta poesia de Antísthenes Pinto eternizou.

 

PS: este texto é um excerto adaptado do discurso de posse do autor à Cadeira de N° 27 da Academia Amazonense de Letras, cujo antecessor fora Antísthenes Pinto.



[1] Poesia reunida, de Antísthenes Pinto, Manaus, Puxirum, 1987.
[2] Dicionário prático de literatura brasileira, de Assis Brasil, Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1979.
[3] Poesia reunida, de Antísthenes Pinto, Manaus, Puxirum, 1987.
[4] Angústia numeral, de Antísthenes Pinto, Manaus, Prefeitura Municipal, 1976.
[5] Idem.
[6] Curvas do tempo, de Antísthenes Pinto, Manaus, Edição do Autor, 1984.