Zemaria Pinto
O Clube da Madrugada fora fundado com um
ideal: ser um centro irradiador de idéias novas. Isto valeria para a política,
a economia, as artes, enfim, para todas as manifestações do pensamento. Havia
entre os jovens fundadores do Clube um desejo incontido de mudança. Antísthenes
Pinto constrói sua obra poética sob esse signo – da experimentação e da busca
do novo, tendo sempre em mente o axioma de Maiakovski: não há arte
revolucionária sem forma revolucionária. As influências são as mais diversas,
indo desde o surrealismo até a poesia concreta. Mas a principal marca da poesia
de Antísthenes é a ironia com que ele traça a cartografia do mundo a sua volta,
sem nenhuma autoindulgência, como no poema de abertura de Sombra e asfalto, de 1957, sua estréia em livro:
O meu patético olhar engole o longe:
– Escuro limitando com escuro
E quanto ao perto: cinza no cinzeiro
Ossuário, de 1963, foi o livro que motivou no crítico Assis
Brasil, para definir o trabalho de Antísthenes, a idéia de “uma poesia de interesse
visual, descarnada, limpa”[2]. Morando
no Rio de Janeiro, publicando regularmente no lendário Suplemento Literário do Jornal do Brasil, quando ainda dirigido
por Mário Faustino, Antísthenes elabora poemas austeros, ásperos, sem
concessões, de onde a poesia brota quase imperceptível:
oblonga
a
noite
gasta-se
em
grilos[3]
Prêmio Prefeitura de Manaus, em 1976 –
havia, há 28 anos, um Prêmio Prefeitura de Manaus de Poesia! –, Angústia numeral é o livro mais
emblemático de Antísthenes, o que não significa o melhor. Aquela contenção de Ossuário explode, treze anos depois, em
uma festa de palavras, onde o verso longo e delirante – ecoando Whitman,
Maiakovski, Fernando Pessoa, ou mesmo o Mário de Andrade da Paulicéia desvairada – nos pega como um
soco:
sejamos malucos embora usemos gravatas
e fiquemos sempre de cócoras.
A mudez é a arma que nos faz rir
do caótico sol da refrega.
Sejamos, também, interiorizados como os postes
e deixemos os cabelos cobrir-nos como lençóis.
Sejamos cães, cães pelo menos vinte e três horas
por dia e façamos da chuva
a ordeira companheira a suavizar nossa náusea.[4]
Este foi o primeiro poema de Antísthenes
que li em livro. Estávamos em 1980, e eu o conhecia apenas dos jornais. Em
menos de uma hora, já havia lido os 41 poemas de Angústia numeral e
começava a relê-los, vibrando cada palavra:
Os guarda-chuvas abertos à rua
vertical e a lepra por baixo num euforismo
de canção.
As janelas caladas deixando o vento túmido
passar as suas patas ciclópicas
e o imenso monociclo levando para nenhuma parte
o homem de cabeça decepada
e as mulheres todas com o sexo
sangrando
cobrindo os olhos congestionados.[5]
Aqueles versos ensandecidos mostravam-me
que as leituras da beat generation,
em especial de Allen Ginsberg, bem como do paulista Roberto Piva, não eram vãs.
Havia alguém muito próximo que dialogava com aqueles poetas. Era preciso
conhecê-lo melhor.
O último livro original de poemas
publicado por Antísthenes Pinto foi Curvas
do tempo, de 1984. Editado por conta do próprio autor, o livro configura-se
como um legado que o poeta teimava em nos deixar. Cada uma das faces de sua
poesia múltipla está representada naquelas 70 páginas, que ainda se dão ao luxo
de trazerem novidades, como o uso da música, marcada pelo domínio do metro
popular, aliado à harmonia advinda das entonações perfeitas, como neste
pastoril, de sabor levemente surreal:
Havia um pássaro em pânico
entre gardênias e Mirra,
foi bem cedo que a vi
com seus cabelos azuis
nessa campina de sono,
de vacas tontas de sol
e laranjas crepitando
como pombos na manhã.[6]
Mas estão também em Curvas do tempo os versos descarnados de Ossuário e os versos longos e arrebatados de Angústia numeral. Estão presentes os cães, os cães sempre presentes
na poesia de Antísthenes. E também os ossos – as flores ósseas, o ósseo sol, o
canto ossificado –, recorrências que se associam e se completam, nos quadros
cáusticos que a inquieta poesia de Antísthenes Pinto eternizou.
PS: este texto
é um excerto adaptado do discurso de posse do autor à Cadeira de N° 27 da
Academia Amazonense de Letras, cujo antecessor fora Antísthenes Pinto.
[1] Poesia reunida, de Antísthenes Pinto,
Manaus, Puxirum, 1987.
[2] Dicionário prático de literatura brasileira,
de Assis Brasil, Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1979.
[3] Poesia reunida, de Antísthenes Pinto,
Manaus, Puxirum, 1987.
[4] Angústia numeral, de Antísthenes Pinto,
Manaus, Prefeitura Municipal, 1976.
[5] Idem.
[6] Curvas do tempo, de Antísthenes Pinto,
Manaus, Edição do Autor, 1984.