Zemaria Pinto
Antísthenes de Oliveira Pinto foi um
artista das letras: poeta, ficcionista, cronista e ensaísta, além de exercer,
por muito tempo, a faina diária do jornalismo. Ao longo de 19 anos de
convivência, lembro-me de visitá-lo em pelo menos quatro endereços: 10 de
Julho, Jardim Paulista, Parque 10 e Joaquim Nabuco. Deixou-nos, aos 71 anos, em
dezembro de 2000. Trabalhando pela sobrevivência até os últimos dias, até onde
lhe permitiu sua saúde, jamais teve tempo para se dedicar à sua arte de modo
integral, o que não o impediu de nos legar uma extensa obra.
Transitando das mais radicais
experiências poéticas da segunda metade do século XX até o consagrado romance
de traço regionalista, Antísthenes Pinto deixou um rastro de luz a iluminar
para sempre a história da literatura amazonense. Autor de doze livros de prosa
– entre romances, novelas, contos, crônicas e ensaios – e cinco de poesia, além
da Poesia reunida[1], o legado
de Antísthenes ainda está por merecer a atenção de estudos mais profundos. Para
falar apenas da superfície, sou tentado a fazer o óbvio levantamento
cronológico. Mas seria enfadonho para os que me lêem, e não faria justiça ao
autor. Por isso, limitar-me-ei a comentar brevemente sua prosa de ficção –
romances, novelas e contos – para em seguida comentar a poesia de Antísthenes,
que, particularmente, me fascina, pela ousadia e essencialidade.
Com a publicação da novela Chavascal, em 1965, Antísthenes Pinto dá
início a uma série de narrativas que têm como tema a vida no interior da
Amazônia. Dava continuidade a uma tradição ilustre: Araújo Amazonas, Alberto
Rangel, Ferreira de Castro, Ramayana de Chevalier, Álvaro Maia, Paulo Jacob,
passando pelo companheiro de Clube da Madrugada Arthur Engrácio, que àquela
altura já publicara Histórias de submundo.
O romance nordestino dos anos 30, que podemos classificar como neorrealista, é
o modelo – não a ser imitado, simplesmente, mas a servir de base a uma literatura
que pudesse ter uma face verdadeiramente amazônica. Na sequência de sua obra,
três romances vêm coroar o trabalho sobre aquele tema inicial, a vida do homem
ribeirinho, repleta de amoralidade e extrema violência: Terra firme, A solidão e os
anjos e Várzea dos afogados. Não
se trata de literatura de denúncia, panfletária, porque não são os homens rudes
e suas vicissitudes o foco principal do autor. Tampouco se verifica o
confortável maniqueísmo, típico de uma literatura dita engajada, muito comum à
época. Acima dos homens e suas enfermidades éticas está o espaço amazônico –
impenetrável, cruel, arquetípico –, que os transforma em monstros morais,
deformados interiormente. A visão infernista que Antísthenes passava da
Amazônia traduzia, em verdade, o seu desencanto para com o futuro daqueles que
vegetavam no esquecimento dos beiradões, cuja única esperança – como para a
Leontina, de Várzea dos afogados –
era a mudança para a capital. Vivíamos o auge da Zona Franca de Manaus. Mas
para o homem do interior tudo continuava como sempre, desde sempre.
O lançamento, em 1981, de É proibido perturbar os pássaros
inaugura um novo ângulo da ficção de Antísthenes: contos de temática urbana,
tramas trabalhadas como se fossem poemas – cada palavra valorizada ao extremo,
texto enxuto, sempre buscando essências. Confirmamos esse fato no livro de
contos seguinte, Os suicidas, onde
observamos que vários contos do livro anterior são revistos e retrabalhados,
numa faina incessante, como se o contista-poeta estivesse sempre procurando a
sociedade ideal entre forma e conteúdo.
Mas a maturidade da obra ficcional de
Antísthenes Pinto ainda estaria por se revelar em sua plenitude, em novelas
exemplares. Antes, porém, o professor pede a palavra e explica, da maneira mais
simples, o que entende por novela, pois há, pelo menos, duas concepções
contraditórias. Fiquemos com aquela que diz que a novela é uma espécie de
‘romance condensado’ – com poucas personagens, poucas células dramáticas, ações
limitadas a um espaço reduzido, e tempo cronológico bem definido. Pois bem, Os agachados, agraciado com o Prêmio
Suframa de Literatura, em 1984 – havia, há 20 anos, um Prêmio Suframa de
Literatura! –, traz-nos um Antísthenes diverso do contador de histórias com
quem nos acostumáramos: num clima onírico, ele acompanha a trajetória de
Rinaldo e a rotina dos botequins de Manaus e seus frequentadores. Nessa novela,
em verdade, a grande personagem é a linguagem, e toda a tensão construída, com
arte, em torno dela.
Por fim, fechando a obra ficcional de
Antísthenes Pinto, temos a novela Porão
das Almas, publicada em 1992, sem dúvida, sua obra-prima. Um menino de 13
anos, Bores, habita o porão de uma velha casa, decadente em todos os aspectos,
em uma bucólica Manaus, hoje apenas imaginada. O pequeno Bores, de saúde
frágil, convive com os fantasmas que lhe frequentam o sórdido porão, mas também
com os fantasmas de carne e osso que transitam à luz do dia pelos corredores
sombrios do sobrado: as tias infelizes, o pai, uma ruína moral, a mãe anulada,
o irmão suicida, a louca Matilde, apaixonada por ele. Explorando os limites do
paradoxo, a tragédia que se abate sobre a família de Bores representa a sua
redenção. Fazendo uso da técnica cinematográfica, a narrativa se estrutura em
quadros que, quando não fechados, completam-se ou explicam-se logo adiante. A
simplicidade da trama, aliada à mediocridade e ao ridículo que esmagam as
personagens, lembra de imediato dois gigantes, quase sempre esquecidos: o
brasileiro Dionélio Machado e o russo Anton Tchekov. Mas são meros pontos de
referência: Antísthenes basta-se em si mesmo.
[1] Poesia: Sombra e asfalto (1957); Ossuário (1963); Angústia numeral (1976); A
rebelião dos bichos (1977); Curvas do
tempo (1984); Poesia reunida
(1987).
Romances:
Terra firme (1970); A solidão e os anjos (1976); Várzea dos afogados (1982).
Novelas: Chavascal (1965); Os agachados (1985); Porão
das almas (1992).
Contos: É proibido perturbar os pássaros (1981);
Os suicidas (1988)
Crônicas:
Quelônios do Carabinani (1984); Os garis das alturas (1992).
Ensaios: Literatura: novos horizontes (1984); Oito poetas amazonenses (1992).