Amigos do Fingidor

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

“Rasos d’água”, pélago profundo 2/2

Zemaria Pinto


O elemento líquido, que por pouco se ausentara, retorna como pano de fundo de lembranças trágicas. Neste ponto, me pergunto por que insisto na dicotomia tragédia/epopeia? Qual a relação dialética entre ambas? Contrariando a idéia simplista de que o herói épico tem sempre um final feliz, enquanto o herói trágico expia eternamente um pecado, socorro-me de Nietzsche, para quem “em volta do herói tudo se torna tragédia”.[1] As aventuras do épico são pontuadas de tragédias, que em menor ou maior grau o afetam. O eu lírico de Rasos d’água, mesmo quando viaja às regiões mais inóspitas da memória, depara-se com tragédias que se traduzem no aprendizado da transitoriedade da vida. “Retrato do tio marinheiro”, “Cinzas na Guanabara”, “O clã dividido”, “Lívido alívio”, “Mudança” e “Tatuagem” são lembranças que preparam, como num concerto, o retorno ao tema inicial, tocado, se podemos assim dizer, em fortíssimo:

 

Não perdeste muitas coisas:
o vago esplendor das horas
a alegria de algum amor 

De outras foste poupado:
desencontros, desilusões
doenças, derrotas, decadência
(Recado sem endereço) 

Nunca mais o clarão do teu sorriso
há de raiar sobre este chão que piso.
(Vilanela) 

Por fim, após breve divagação (“Amargas tâmaras” e “Pomar proibido”), o poema que põe termo à primeira parte do livro – “Pedra e água” – e contém, talvez, a chave para a sua compreensão como um todo, e, outro talvez, da compreensão da poesia de Astrid Cabral, pois vai ao encontro do texto (poema em prosa?) que remata a segunda parte e o abraça e se funde com ele: 

Deus me deu parentesco
com pedra penha rocha.
(...)
Rebelde, embalo o sonho
de ser água, forma indefinida
e vaga
(Pedra e água)

 

Lavo minha alma em todas essas águas livres e me comprazo com os miúdos fios d’água que brotam das torneiras e me dão banho e enchem meu copo. E agradeço diariamente a serena alegria do corpo limpo e da sede saciada. Eu, também água.
(Águas represadas) 

É inevitável a recorrência a Gaston Bachelard: “a água é realmente o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser votado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente”.[2] Voltando-se para o mais fundo interior, intramuros, o eu lírico persegue a não-forma, que representa, ao mesmo tempo, a volúpia de todas as formas possíveis. Porque a simbologia inerente à água é dual e dialética: fonte da vida e da morte, metáfora representativa da criação e da destruição. A água masculina, que fecunda a terra. A água feminina, que abriga em seu ventre um universo. A água que promove a tragédia é a mesma água que celebra a vida.

“Barquinhos de papel”, a segunda parte do livro, é o olhar para fora, extramuros, seja a partir de uma gravura de Hokusai, sejam reflexões sobre o mar: o mar devorador de troféus, o mar incansável, o mar assassino – o mar, água indefinida. No seguimento, o elemento líquido se transforma. De início, a chuva: 

A água tem seus encantos
visuais, táteis, musicais
ainda mais assinzinha
de invisíveis vasilhas
caindo em mim vertical
viva
(Chuva em abril) 

Mas a chuva esconde o sol, a luz, a alegria, a felicidade, a esperança, transformando a imagem externa (as ruas são rasos rios) em melancolia, evocativa do pathos dominante na primeira parte: 

Somos seres sitiados, encharcados
de chuvas interiores.
(Chuva grossa em Marble Arch) 

Pleno outono.
Dos cílios um rio escorre.
Todo sol um dia morre.
(Chuva fina em Marble Arch) 

Na sequência, os rios fluindo pela lembrança – ora motivos de viagens, doloridas viagens, ora lembranças de tragédias: o rio metamorfoseado, a enchente, o afogado à deriva. Cabe somente a busca da foz, a viagem de retorno ao mar, a origem de tudo: tudo sai do mar, tudo a ele retorna.  

Perto fica a foz.
Atingi-la
é deitar-se
à deriva veloz.
(Acimabaixo)
 
Essa viagem de volta não engendra menos perigos que a de ida: águas paralíticas, submissas, devem ser evitadas. Mas é inevitável recorrer à leitura simbólica, representada pelo embate da água doce dos rios da infância e da memória versus a água do mar: a quietude e a pureza em contraponto à desordem e à salsugem; a paz oposta à violência; a placidez contra a tempestade. O retorno é um desafio à imaginação criadora, uma adesão ao invisível, um ato de coragem – pois é disso que se nutre a verdadeira poesia. Rasos d’água, pélago profundo, reafirma a posição ímpar de Astrid Cabral no panorama da poesia brasileira contemporânea.


[1] Além do bem e do mal.
[2] A água e os sonhos – ensaio sobre a imaginação da matéria.