Zemaria Pinto
O elemento líquido, que por pouco se ausentara, retorna
como pano de fundo de lembranças trágicas. Neste ponto, me pergunto por que
insisto na dicotomia tragédia/epopeia? Qual a relação dialética entre ambas?
Contrariando a idéia simplista de que o herói épico tem sempre um final feliz,
enquanto o herói trágico expia eternamente um pecado, socorro-me de Nietzsche,
para quem “em volta do herói tudo se torna tragédia”.[1] As
aventuras do épico são pontuadas de tragédias, que em menor ou maior grau o
afetam. O eu lírico de Rasos d’água, mesmo quando viaja às regiões mais
inóspitas da memória, depara-se com tragédias que se traduzem no aprendizado da
transitoriedade da vida. “Retrato do tio marinheiro”, “Cinzas na Guanabara”, “O
clã dividido”, “Lívido alívio”, “Mudança” e “Tatuagem” são lembranças que
preparam, como num concerto, o retorno ao tema inicial, tocado, se podemos
assim dizer, em fortíssimo:
Não perdeste muitas coisas:
o vago esplendor das horas
a alegria de algum amor
De outras foste poupado:
desencontros, desilusões
doenças, derrotas, decadência
(Recado sem
endereço)
Nunca mais o clarão do teu sorriso
há de
raiar sobre este chão que piso.
(Vilanela)
Por fim, após breve divagação (“Amargas tâmaras” e
“Pomar proibido”), o poema que põe termo à primeira parte do livro – “Pedra e
água” – e contém, talvez, a chave para a sua compreensão como um todo, e, outro
talvez, da compreensão da poesia de Astrid Cabral, pois vai ao encontro do
texto (poema em prosa?) que remata a segunda parte e o abraça e se funde com
ele:
Deus me deu parentesco
com pedra penha rocha.
(...)
Rebelde, embalo o sonho
de ser água, forma indefinida
e vaga
(Pedra e água)
Lavo minha
alma em todas essas águas livres e me comprazo com os miúdos fios d’água que
brotam das torneiras e me dão banho e enchem meu copo. E agradeço diariamente a
serena alegria do corpo limpo e da sede saciada. Eu, também água.
(Águas represadas)
É inevitável a recorrência a Gaston Bachelard: “a água
é realmente o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre
o fogo e a terra. O ser votado à água é um ser em vertigem. Morre a cada
minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente”.[2]
Voltando-se para o mais fundo interior, intramuros, o eu lírico persegue a
não-forma, que representa, ao mesmo tempo, a volúpia de todas as formas
possíveis. Porque a simbologia inerente à água é dual e dialética: fonte da
vida e da morte, metáfora representativa da criação e da destruição. A água
masculina, que fecunda a terra. A água feminina, que abriga em seu ventre um
universo. A água que promove a tragédia é a mesma água que celebra a vida.
“Barquinhos de papel”, a segunda parte do livro, é o
olhar para fora, extramuros, seja a partir de uma gravura de Hokusai, sejam
reflexões sobre o mar: o mar devorador de troféus, o mar incansável, o mar
assassino – o mar, água indefinida. No seguimento, o elemento líquido se
transforma. De início, a chuva:
A água tem seus encantos
visuais, táteis, musicais
ainda mais assinzinha
de invisíveis vasilhas
caindo em mim vertical
viva
(Chuva em
abril)
Mas a chuva esconde o sol, a luz, a alegria, a
felicidade, a esperança, transformando a imagem externa (as ruas são rasos rios) em melancolia, evocativa do pathos dominante na primeira parte:
Somos seres sitiados, encharcados
de chuvas interiores.
(Chuva grossa em Marble Arch)
Pleno outono.
Dos cílios um rio escorre.
Todo sol um dia morre.
(Chuva fina em Marble Arch)
Na sequência, os rios
fluindo pela lembrança – ora motivos de viagens, doloridas viagens, ora
lembranças de tragédias: o rio metamorfoseado, a enchente, o afogado à deriva.
Cabe somente a busca da foz, a viagem de retorno ao mar, a origem de tudo: tudo
sai do mar, tudo a ele retorna.
Perto fica a foz.
Atingi-la
é deitar-se
à deriva veloz.
(Acimabaixo)