Amigos do Fingidor

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O desvendar do belo nos corpos mortos


 
João Bosco Botelho

A História evidencia que o estudo do corpo humano, escondido pela pele, encontrou muitas dificuldades nas estruturas de poderes, especialmente, das religiões monoteístas. A justificativa da resistência esteve contida no dogma de o homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus.

JUDAÍSMO

Com o pressuposto de o homem representar a cópia fiel de Deus, nada justificaria a abertura do corpo morto para o aprendizado. O naturalmente desconhecido – o escondido atrás da pele – fazia parte do milagre criador.
Por essa razão, só estudaram os cadáveres insepultos dos heréticos e condena­dos (Talmud, Bekhoroth 45a. = Um dia os discípulos de Rabin Ismael dissecaram o corpo de uma prostituta que o governante tinha condenado à fogueira...).

CRISTIANISMO

O cristianismo introduziu certa oposição entre o físico e o espiritual (Mt 10,28). O ser humano, concebido no corpo e espírito, deveria ser o instrumento para servir a Deus (2Cor 5,10).
É interessante assinalar que o Novo Testamento (NT) manteve do Antigo Testamento (AT)  o sentido mítico para o sangue (Mt 16,17 e 1Cor 15,50). A nova e eterna Aliança foi selada por Jesus com o seu próprio sangue (1Cor 11,25 = Do mesmo modo, após a ceia, tomou o cálice dizendo: Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei‑o em memória de mim).

ISLAMISMO

A palavra anatomia em árabe – ilm al‑tasrib – é precedida pela raiz saraha que significa literalmente  trinchar, cortar, separar, atada ao contato com o sangue coagulado.  
Como o islamismo entendeu a criação dependente e sequenciada (Sura 23,13‑14 = Depois, transformamos o esperma em coágulo, e o coágulo em óvulo, e o óvulo em osso, e revestimos o osso com carne. E era mais uma criatura. Louvado seja Deus, o melhor dos criadores), a inevitável intervenção da dissecção anatômica, dilacerando a carne, também recebeu forte resistência.

CORPOS DESVENDADOS
A decomposição da ordem feudal contribuiu para que o desejo de conhecer o que estava encoberto sob a pele vencesse a interdição. No Renascimento europeu, cirurgiões e pintores começaram o movimento para levantar o véu opaco que cobria os músculos e as vísceras.

A emocionante harmonia do corpo desvendado vibrou os pincéis dos pintores. A sensibilidade de Leonardo da Vinci (1452‑1519) buscando a profundidade da forma produziu desenhos perfeitos dos ossos, das artérias e veias. O belo dos corpos mortos conduziu Rembrandt (1606‑1669) na tela “Lição de Anatomia do Dr.Tulp”. Esse quadro eternizando a majestade do cirurgião e os semblantes plenos de admiração dos alunos, inflados de fascínio, como os desenhos anatômicos de Leonardo, também reforçam do quanto o desvendar do corpo morto encantou os homens.

 

O autor é Doutor Honoris Causa da Universidade de Toulouse, França.