João Bosco Botelho
A História evidencia
que o estudo do corpo humano, escondido pela pele, encontrou muitas dificuldades
nas estruturas de poderes, especialmente, das religiões monoteístas. A justificativa
da resistência esteve contida no dogma de o homem ter sido criado à imagem e
semelhança de Deus.
JUDAÍSMO
Com o pressuposto de o homem representar a cópia fiel
de Deus, nada justificaria a abertura do corpo morto para o aprendizado. O
naturalmente desconhecido – o escondido atrás da pele – fazia parte do milagre
criador.
Por essa razão, só estudaram os cadáveres insepultos
dos heréticos e condenados (Talmud, Bekhoroth 45a. = Um dia os discípulos de Rabin Ismael dissecaram o corpo de uma prostituta
que o governante tinha condenado à fogueira...).
CRISTIANISMO
O cristianismo introduziu certa oposição entre o
físico e o espiritual (Mt 10,28). O ser humano, concebido no corpo e espírito,
deveria ser o instrumento para servir a Deus (2Cor 5,10).
É interessante assinalar que o Novo Testamento (NT)
manteve do Antigo Testamento (AT) o
sentido mítico para o sangue (Mt 16,17 e 1Cor 15,50). A nova e eterna Aliança
foi selada por Jesus com o seu próprio sangue (1Cor 11,25 = Do mesmo modo, após a ceia, tomou o cálice
dizendo: Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes,
fazei‑o em memória de mim).
ISLAMISMO
A palavra anatomia em árabe – ilm al‑tasrib – é precedida pela raiz saraha que significa literalmente
trinchar, cortar, separar, atada ao contato com o sangue coagulado.
Como o islamismo entendeu a criação dependente e sequenciada
(Sura 23,13‑14 = Depois, transformamos o
esperma em coágulo, e o coágulo em óvulo, e o óvulo em osso, e revestimos o
osso com carne. E era mais uma criatura. Louvado seja Deus, o melhor dos criadores),
a inevitável intervenção da dissecção anatômica, dilacerando a carne, também recebeu
forte resistência.
CORPOS DESVENDADOS
A decomposição da ordem feudal contribuiu para que o desejo
de conhecer o que estava encoberto sob a pele vencesse a interdição. No Renascimento europeu, cirurgiões e pintores
começaram o movimento para levantar o véu opaco que cobria os músculos e as vísceras.
A emocionante harmonia do corpo desvendado vibrou os pincéis dos pintores. A sensibilidade de Leonardo da Vinci (1452‑1519) buscando a profundidade da forma produziu desenhos perfeitos dos ossos, das artérias e veias. O belo dos corpos mortos conduziu Rembrandt (1606‑1669) na tela “Lição de Anatomia do Dr.Tulp”. Esse quadro eternizando a majestade do cirurgião e os semblantes plenos de admiração dos alunos, inflados de fascínio, como os desenhos anatômicos de Leonardo, também reforçam do quanto o desvendar do corpo morto encantou os homens.
O autor é Doutor
Honoris Causa da Universidade de
Toulouse, França.