Amigos do Fingidor

quinta-feira, 1 de maio de 2014

A pós-modernidade da Medicina



 João Bosco Botelho


Ao se pensar a pós‑modernidade, como sugere o filósofo francês Jean‑François Lyotard (1924-1998), também moldada pelo desencanto das certezas acabadas, se tornou inevitável repensar o enquadramento metafísi­co de muitas palavras‑sentimentos, como herói, razão, verdade e progresso. Por essa razão, é possível pensar que o espaço está ainda mais restrito para sustentar, por muito tempo, a veracidade do herói que separa, linearmente, com superproposta, os mundos bons dos maus.
A Medicina atual está claramente atada nessa construção. Desapareceram os grandes heróis médicos, quase sempre representados pelos cirurgiões que após informar às famílias "só é possível saber se haverá a cura com a cirurgia", cortavam, suturavam e retiravam, heroicamente, partes dos corpos. Ansiosamente esperado pelos familiares e amigos do doente, todos angustiados, aglomerados na porta do centro cirúrgico, após a cirurgia, o cirurgião com o avental sujo de sangue, informava como o super-herói: viverá; morrerá. Ninguém ousava duvidar daquele prognóstico que selava a vida ou a morte!
Na atualidade, a Medicina é representa pelo grande trem caminhando veloz­mente em direção aos laboratórios montados para desvendar as moléculas, dos quais o projeto genoma é a parcela mais significativa, com a saúde sendo conduzida para a intimidade da estrutura molecular dos genes. Essa posição, nascida com a pós‑modernidade, está rompendo muitas fronteiras do homem com a linearidade do tempo organizado, onde é impossível saber com precisão a diferença entre doença e saúde, fazendo com que o cirurgião perdesse o pressuposto de super-herói. Na maior parte das cirurgias executadas por exímios profissionais, o cirurgião sequer sabe o nome do doente.
Algumas doenças antes tratadas pela cirurgia heroica, só realizada pelos cirurgiões mais exímios, durante as quais os alunos da graduação e da pós-graduação se espremiam para ver o corpo desnudado pelo bisturi, são curadas por outras terapêuticas. 
Por outro lado, as notícias sobre a engenharia genética já fazem parte do cotidiano, fazendo com que esse tema entre nas casas como o anúncio de qualquer outro produto de consumo. A mídia mostra com grande destaque a grande colheita de grãos ou a cura de certa doença antes não imaginada, tudo graças às pesquisas reveladoras dos segredos dos genes.
         A estrutura genética do homem é incrivelmente grande e com­plicada. Para ser possível avaliar a complexidade das informações genéticas transportadas no momento da união do espermatozoide com o óvulo, estima‑se em seis bilhões de caracteres para codificar as substâncias e as reações químicas que controlam a vida de uma única célula. Se toda a cadeia espiralada de ADN (ácido desoxirribonucléico) formado do genoma humano fosse colocada em linha reta, atingiria a fantástica distância de muitos milhares de quilôme­tros de comprimento.
         O projeto genoma só identificou a forma dos genes, portanto muito distante de como se inter-relacionam em incontáveis funções biológicas. Em acréscimo, para aumentar a sensação de impotência da ciência frente ao designo da natureza, os enigmas não acabarão com o desvendar da molécula. Sem dúvida, restará saber como os átomos e as partículas subatômicas, compostos fundamentais das moléculas, se organizam para gerar a vida e a morte.

         Ainda nesse século, a cirurgia das doenças crônicas sentirá maior restrição, obrigando os novos cirurgiões a dividir o êxito com as máquinas por meio da cirurgia robótica.