João Bosco Botelho
Ao se pensar a
pós‑modernidade, como sugere o filósofo francês Jean‑François Lyotard (1924-1998), também moldada pelo desencanto das certezas
acabadas, se tornou inevitável repensar o enquadramento metafísico de muitas
palavras‑sentimentos, como herói, razão, verdade e progresso. Por essa razão, é
possível pensar que o espaço está ainda mais restrito para sustentar, por muito
tempo, a veracidade do herói que separa, linearmente, com superproposta, os
mundos bons dos maus.
A Medicina
atual está claramente atada nessa construção. Desapareceram os grandes heróis
médicos, quase sempre representados pelos cirurgiões que após informar às
famílias "só é possível saber se haverá a cura com a cirurgia",
cortavam, suturavam e retiravam, heroicamente, partes dos corpos. Ansiosamente
esperado pelos familiares e amigos do doente, todos angustiados, aglomerados na
porta do centro cirúrgico, após a cirurgia, o cirurgião com o avental sujo de
sangue, informava como o super-herói: viverá; morrerá. Ninguém ousava duvidar
daquele prognóstico que selava a vida ou a morte!
Na atualidade,
a Medicina é representa pelo grande trem caminhando velozmente em direção aos
laboratórios montados para desvendar as moléculas, dos quais o projeto genoma é
a parcela mais significativa, com a saúde sendo conduzida para a intimidade da
estrutura molecular dos genes. Essa posição, nascida com a pós‑modernidade, está
rompendo muitas fronteiras do homem com a linearidade do tempo organizado, onde
é impossível saber com precisão a diferença entre doença e saúde, fazendo com
que o cirurgião perdesse o pressuposto de super-herói. Na maior parte das
cirurgias executadas por exímios profissionais, o cirurgião sequer sabe o nome
do doente.
Algumas
doenças antes tratadas pela cirurgia heroica, só realizada pelos cirurgiões
mais exímios, durante as quais os alunos da graduação e da pós-graduação se
espremiam para ver o corpo desnudado pelo bisturi, são curadas por outras
terapêuticas.
Por outro lado,
as notícias sobre a engenharia genética já fazem parte do cotidiano, fazendo
com que esse tema entre nas casas como o anúncio de qualquer outro produto de
consumo. A mídia mostra com grande destaque a grande colheita de grãos ou a
cura de certa doença antes não imaginada, tudo graças às pesquisas reveladoras
dos segredos dos genes.
A estrutura genética do homem é incrivelmente grande e complicada.
Para ser possível avaliar a complexidade das informações genéticas
transportadas no momento da união do espermatozoide com o óvulo, estima‑se em
seis bilhões de caracteres para codificar as substâncias e as reações químicas
que controlam a vida de uma única célula. Se toda a cadeia espiralada de ADN
(ácido desoxirribonucléico) formado do genoma humano fosse colocada em linha
reta, atingiria a fantástica distância de muitos milhares de quilômetros de
comprimento.
O projeto genoma só identificou a forma dos genes, portanto muito
distante de como se inter-relacionam em incontáveis funções biológicas. Em
acréscimo, para aumentar a sensação de impotência da ciência frente ao designo
da natureza, os enigmas não acabarão com o desvendar da molécula. Sem dúvida,
restará saber como os átomos e as partículas subatômicas, compostos
fundamentais das moléculas, se organizam para gerar a vida e a morte.
Ainda nesse século, a cirurgia das doenças crônicas sentirá
maior restrição, obrigando os novos cirurgiões a dividir o êxito com as
máquinas por meio da cirurgia robótica.