Zemaria Pinto
O professor  Marcos 
Frederico Krüger Aleixo, referindo-se a Dois  irmãos , metaforiza a narrativa 
de Nael e concebe uma estrutura  em  afluência : o
rio  Nael recebe a matéria 
de vários  narradores-afluentes, como  Domingas, Halim, Adamor, Rânia e Zana e alguns  destes recebem informações 
de outros  subafluentes .
Marcos  Frederico identifica ainda  o tempo ,
a Amazônia e a cidade  de Manaus como  narradores que 
influem diretamente  no trabalho 
de Nael.[1]
Allison Leão , referindo-se também  a Dois  irmãos , diz que 
Nael manipula arquivos  diversos  para  montar  sua  narrativa .[2]
O mesmo  pode ser 
dito  da Moça 
Sem  Nome ,
do Relato, e de Lavo, em  Cinzas  do Norte . O narrador hatouniano monta 
seu  puzzle
narrativo a partir  de arquivos 
bastante  diversificados. A Moça  Sem  Nome  trabalha  com  sua  própria  memória 
e com  as memórias 
gravadas de Hakim, Dorner, Hindié Conceição, e do marido 
de Emilie, que  Dorner registrara em  um  caderno , montando a narrativa 
em  forma  de mosaico , para  usar  uma expressão  de
Marcos  Frederico. Lavo constrói sua  narrativa  a
partir  de cartas ,
cartões-postais e um  diário  de Mundo ,
utilizando também  o relato de Ranulfo, mas  seu  principal  arquivo  é sua  memória , onde  ele 
recupera o contato  com 
outros  personagens 
da trama , como 
Jano, Alícia e a tia  Ramira. Neste caso , a narrativa 
funde as duas técnicas : mosaico  e afluência .   
Em plena temporada de ópera, não é impróprio afirmar que os narradores
hatounianos orquestram a polifonia de vozes dos subnarradores que se espraiam
pelas narrativas.
O próprio  Milton Hatoum traça 
um  paralelo 
entre  Euclides da Cunha 
e Walter Benjamin: enquanto  o filósofo alemão  identifica dois  tipos  de narradores muito 
comuns  – o do viajante ,
que  vem de longe ,
e o do camponês , fixado à terra ,
– Euclides, em  À margem  da História ,
fala  do “observador 
errante  que 
percorre a bacia  amazônica ”
e do “homem  sedentário ”,
postado à margem  do rio .[3]
De muito  longe 
vêm boa parte  dos personagens 
de Hatoum, e são  os que 
têm mais  histórias 
a contar . O próprio 
Milton, em  entrevista ,
afirmou que  nos 
primeiros  anos 
de sua  infância ,
ele  escutava os mais 
velhos  conversarem em 
árabe , “a ponto  de pensar  que  essa língua  era  falada  pelos  adultos  e o português  pelas
crianças ”.[4]
Mas  os enraizados também 
têm muito  a contar ,
estabelecendo uma conexão  permanente  entre 
a tradição  e as suas 
histórias  pessoais .
Em  certo 
ponto , os papéis se invertem: os viajantes  se fixam na terra 
e os nativos  erram a esmo .
Equacionando: os três  romances  representam a construção 
(via  linguagem )
das ruínas  (da memória ,
da linguagem ), que 
se organizam a partir  de arquivos 
diversos , dispersos. 
A Moça  Sem 
Nome , Nael e Lavo escrevem a história  da fundação ,
apogeu  e destruição 
de três  famílias .
Quase  escrevo o lugar-comum 
“saga ” em 
vez  do genérico 
história . Mas 
não  há nada 
de heróico  nas três 
narrativas . Trata-se de pessoas  comuns ,
que  andam pelas ruas 
de uma Manaus que  ainda 
arranca suspiros  saudosos 
de uns poucos  sobreviventes. Mas  são  vidas  absurdamente 
verossímeis, que  evocam paisagens  varridas pelo  tempo , como  a fantástica  cidade-flutuante, que 
eu-menino olhava de longe , com  um  misto  de encanto 
e de medo . 
[1]
ALEIXO, Marcos  Frederico Krüger. O mito 
de origem  em 
Dois  irmãos .
In: Intertextos nº 3, Manaus: EDUA/Valer , 2002, p. 203-214.
[2] LEÃO , Allison. A narrativa  poética 
em  Dois  irmãos : lugar 
de intercâmbio  entre 
suportes  arquivísticos. In: Somanlu:
revista  de estudos 
amazônicos . Ano 
5, n° 1. Manaus: Edua; Fapeam, 2006, p. 21-34.
 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
