Amigos do Fingidor

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes 2007 – 6/7



Zemaria Pinto

O professor Marcos Frederico Krüger Aleixo, referindo-se a Dois irmãos, metaforiza a narrativa de Nael e concebe uma estrutura em afluência: o rio Nael recebe a matéria de vários narradores-afluentes, como Domingas, Halim, Adamor, Rânia e Zana e alguns destes recebem informações de outros subafluentes. Marcos Frederico identifica ainda o tempo, a Amazônia e a cidade de Manaus como narradores que influem diretamente no trabalho de Nael.[1]
Allison Leão, referindo-se também a Dois irmãos, diz que Nael manipula arquivos diversos para montar sua narrativa.[2] O mesmo pode ser dito da Moça Sem Nome, do Relato, e de Lavo, em Cinzas do Norte. O narrador hatouniano monta seu puzzle narrativo a partir de arquivos bastante diversificados. A Moça Sem Nome trabalha com sua própria memória e com as memórias gravadas de Hakim, Dorner, Hindié Conceição, e do marido de Emilie, que Dorner registrara em um caderno, montando a narrativa em forma de mosaico, para usar uma expressão de Marcos Frederico. Lavo constrói sua narrativa a partir de cartas, cartões-postais e um diário de Mundo, utilizando também o relato de Ranulfo, mas seu principal arquivo é sua memória, onde ele recupera o contato com outros personagens da trama, como Jano, Alícia e a tia Ramira. Neste caso, a narrativa funde as duas técnicas: mosaico e afluência.  
Em plena temporada de ópera, não é impróprio afirmar que os narradores hatounianos orquestram a polifonia de vozes dos subnarradores que se espraiam pelas narrativas.
O próprio Milton Hatoum traça um paralelo entre Euclides da Cunha e Walter Benjamin: enquanto o filósofo alemão identifica dois tipos de narradores muito comuns – o do viajante, que vem de longe, e o do camponês, fixado à terra, – Euclides, em À margem da História, fala do “observador errante que percorre a bacia amazônica” e do “homem sedentário”, postado à margem do rio.[3] De muito longe vêm boa parte dos personagens de Hatoum, e são os que têm mais histórias a contar. O próprio Milton, em entrevista, afirmou que nos primeiros anos de sua infância, ele escutava os mais velhos conversarem em árabe, “a ponto de pensar que essa língua era falada pelos adultos e o português pelas crianças”.[4] Mas os enraizados também têm muito a contar, estabelecendo uma conexão permanente entre a tradição e as suas histórias pessoais. Em certo ponto, os papéis se invertem: os viajantes se fixam na terra e os nativos erram a esmo.
Equacionando: os três romances representam a construção (via linguagem) das ruínas (da memória, da linguagem), que se organizam a partir de arquivos diversos, dispersos.
A Moça Sem Nome, Nael e Lavo escrevem a história da fundação, apogeu e destruição de três famílias. Quase escrevo o lugar-comumsagaem vez do genérico história. Mas nãonada de heróico nas três narrativas. Trata-se de pessoas comuns, que andam pelas ruas de uma Manaus que ainda arranca suspiros saudosos de uns poucos sobreviventes. Mas são vidas absurdamente verossímeis, que evocam paisagens varridas pelo tempo, como a fantástica cidade-flutuante, que eu-menino olhava de longe, com um misto de encanto e de medo.




[1] ALEIXO, Marcos Frederico Krüger. O mito de origem em Dois irmãos. In: Intertextos nº 3, Manaus: EDUA/Valer, 2002, p. 203-214.
[2] LEÃO, Allison. A narrativa poética em Dois irmãos: lugar de intercâmbio entre suportes arquivísticos. In: Somanlu: revista de estudos amazônicos. Ano 5, n° 1. Manaus: Edua; Fapeam, 2006, p. 21-34.
[3] HATOUM, Milton. Escrever à margem da História. 1993. Publicado no site www.hottopos.com/collat6
[4] Entrevista a Aida Ramezá Hanania. 1993.  Publicada no site  www.hottopos.com/collat6