Amigos do Fingidor

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes 2007 – 3/7



Zemaria Pinto

III

O ano de 1954 é significativo para a arte amazonense. A 22 de novembro – provavelmente, noite alta –, um grupo de jovens insatisfeitos com a mediocridade da vida provinciana fundava o Clube da Madrugada, que viria a fazer história. Inicialmente, como um movimento de cunho político, visando romper o marasmo e o anacronismo econômico, ideológico e ético em que a cidade mergulhara após a crise da borracha, havia cinco décadas, e combater a falta de perspectiva de uma juventude que via saída nos poucos navios que chegavam até o porto. Não foi à toa que a maioria dos fundadores do Clube da Madrugada enveredou por caminhos não ligados às artes, especialmente o da Economia. Com o tempo, entretanto, aquele movimento de jovens idealistas da mais diversificada formação metamorfoseou-se na maior manifestação cultural vista por esta cidade, mudando os rumos da nossa poesia, da nossa ficção e das nossas artes plásticas.
Mas nem da revolução madrugadense fez-se o ano de 54. A 26 de abril daquele ano, uma jovem de apenas 21 anos, quase uma adolescente, fundara um curso de música que, se não pretendia fazer revoluções e nem mesmo balançar as debilitadas estruturas da província, viria também a fazer história. Era a Ivete. A tia Ivete, como passou a ser chamada depois, com o fluir inexorável do tempo. Era a Ivete Ibiapina, que viria a ser referência no cenário musical erudito de Manaus. Era a menina Ivete Freire Ibiapina, que fundava não apenas mais um curso de música, pois havia outros bons cursos na cidade; a menina Ivete criava um novo conceito para cursos de música: uma escola total, que ensinaria seus alunos de música a amar a Arte, a discernir a Beleza, a buscar a Harmonia. Numa palavra, embora poucos se lembrem disso, ensinar Arte é ensinar Ética: é formar cidadãos para o confronto com a vida. E se vivíamos, na década de 1950, uma época em que as mulheres tinham pouquíssima liberdade, o Curso de Música Ivete Freire Ibiapina estimulou a liberdade do conhecimento, do saber, da aprendizagem, da busca incessante, da inquietação intelectual naquelas oito alunas[1] fundadoras, que mais tarde se multiplicariam por dezenas, às quais se juntaram também muitos e muitos rapazes. Ivete se nos afigura hoje como uma mulher à frente de seu tempo, fazendo-se sacerdotisa dessa inquietação, dessa busca pela liberdade. Muitas foram as dificuldades encontradas; mas muito mais foram as vitórias alcançadas.
Abro um parêntese para lembrar que Ivete em muitas ocasiões brilhou nesta casa, aqui mesmo, nesta sala. Mas a primeira vez, novembro de 1949, ficou-lhe gravada em fogo na memória. Para uma apresentação no velho piano de armário da Academia, pediram a Ivete que esperasse na ante-sala; ao anúncio de seu nome, ninguém menos que o mitológico Dr. Péricles Moraes iria entronizá-la. A menina Ivete, com apenas 17 anos, imaginava que o príncipe Péricles parecesse mesmo com um príncipe, de cuidadas madeixas, cavanhaque bem apanhado e perfil atlético. Ao ser convidada a entrar na sala por um gentil senhor curvado ao peso dos anos, ela agradeceu delicada, mas avisou que aguardava pelo Dr. Péricles. Com um sorriso enigmático, o gentil senhor, que em nada lembrava um príncipe dos contos de fadas, tomou-lhe a mão e disse: muito prazer, senhorita, eu sou o Péricles...






[1] Marly Hatoum, irmã de Milton, era uma daquelas oito alunas.