Zemaria Pinto
III
O ano
de 1954 é significativo para
a arte amazonense .
A 22 de novembro – provavelmente, noite alta –, um grupo de jovens insatisfeitos com
a mediocridade da vida provinciana
fundava o Clube da Madrugada ,
que viria a fazer
história . Inicialmente ,
como um
movimento de cunho
político , visando romper
o marasmo e o anacronismo
econômico , ideológico e ético em que a cidade
mergulhara após a crise
da borracha , havia cinco décadas , e combater a falta de perspectiva
de uma juventude que
só via saída nos poucos navios que chegavam até
o porto . Não
foi à toa que
a maioria dos fundadores
do Clube da Madrugada
enveredou por caminhos
não ligados às artes ,
especialmente o da Economia .
Com o tempo ,
entretanto , aquele
movimento de jovens
idealistas da mais
diversificada formação metamorfoseou-se
na maior manifestação
cultural vista por
esta cidade , mudando os rumos da nossa poesia , da nossa
ficção e das nossas artes
plásticas .
Mas nem
só da revolução
madrugadense fez-se o ano de 54. A 26 de abril daquele ano ,
uma jovem de apenas
21 anos , quase
uma adolescente , fundara um curso de música que , se não pretendia fazer revoluções e nem
mesmo balançar
as debilitadas estruturas da província , viria também
a fazer história .
Era a Ivete. A tia
Ivete, como passou a ser
chamada depois ,
com o fluir inexorável do tempo .
Era a Ivete Ibiapina, que viria a ser referência no cenário
musical erudito de Manaus. Era a menina
Ivete Freire Ibiapina, que fundava não apenas mais um curso de música ,
pois havia outros
bons cursos
na cidade ; a menina
Ivete criava um novo
conceito para
cursos de música :
uma escola total ,
que ensinaria seus
alunos de música
a amar a Arte , a discernir a Beleza , a buscar a Harmonia .
Numa palavra , embora
poucos se lembrem disso, ensinar
Arte é ensinar Ética : é formar cidadãos para o confronto com a vida . E se vivíamos, na década
de 1950, uma época em
que as mulheres
tinham pouquíssima liberdade , o Curso de Música
Ivete Freire Ibiapina estimulou a liberdade
do conhecimento , do saber ,
da aprendizagem, da busca incessante , da inquietação intelectual naquelas oito
alunas[1]
fundadoras, que mais
tarde se multiplicariam por dezenas , às
quais se juntaram também
muitos e muitos
rapazes. Ivete se nos afigura hoje como uma mulher à frente
de seu tempo ,
fazendo-se sacerdotisa dessa inquietação , dessa busca pela liberdade . Muitas foram as dificuldades
encontradas; mas muito mais foram as vitórias
alcançadas.
Abro um parêntese para
lembrar que Ivete em muitas ocasiões brilhou nesta casa, aqui mesmo, nesta sala.
Mas a primeira vez, novembro de 1949, ficou-lhe gravada em fogo na memória. Para
uma apresentação no velho piano de armário da Academia, pediram a Ivete que
esperasse na ante-sala; ao anúncio de seu nome, ninguém menos que o mitológico Dr.
Péricles Moraes iria entronizá-la. A menina Ivete, com apenas 17 anos,
imaginava que o príncipe Péricles parecesse mesmo com um príncipe, de cuidadas
madeixas, cavanhaque bem apanhado e perfil atlético. Ao ser convidada a entrar
na sala por um gentil senhor curvado ao peso dos anos, ela agradeceu delicada,
mas avisou que aguardava pelo Dr. Péricles. Com um sorriso enigmático, o gentil
senhor, que em nada lembrava um príncipe dos contos de fadas, tomou-lhe a mão e
disse: muito prazer, senhorita, eu sou o Péricles...