Zemaria Pinto
IV
Tantas são as nuanças na arquitetura narrativa
de Relato de um
certo Oriente ,
Dois irmãos
e Cinzas do Norte [1]
que preferi, preterindo o autor , falar de suas obras , ou melhor , de um aspecto muito especial
de suas obras :
o narrador. Mas não
quero entrar em
matéria acadêmica ;
antes , quero recuperar
a vida que
pulsa nesses personagens-narradores: a moça sem nome de Relato
de um certo
Oriente , Nael, o neto bastardo
de Dois irmãos ,
e Lavo, o memorialista de Cinzas do Norte .
Pretendo demonstrar , nesta alocução ,
que há algo
em comum
entre essas criaturas ;
ou , tecnicamente, examinar
a poética da narrativa
no romance de Milton Hatoum.
Os três romances
têm como matéria
principal a vida
na cidade de Manaus, a cidade que viu seu autor nascer há 54 anos . É claro que não é da sua experiência pessoal
que ele
fala , mas
de histórias inventadas, que poderiam ser as histórias de sua
família , de seus
conhecidos , ou
que ele
simplesmente ouvira contar ,
na Pensão Fenícia
da sua infância .
Histórias criadas a partir
da matéria-prima que
a vida lhe
oferece: a história pessoal
do autor puxa
a história da família ,
que se liga
à história da cidade ,
que converge para
a história do país ,
que deságua na história
do nosso tempo ...
Há muitos tipos
de narradores. Simplifiquemos, dividindo-os em
dois grandes grupos : os que
participam da história diretamente e os que
contam a história sem
dela haver tomado parte . A este
grupo pertence
o narrador onisciente , que
o leitor desavisado ,
muitas vezes , confunde com o autor . Os
narradores de Milton Hatoum pertencem ao primeiro grupo , são personagens , embora
secundários , têm nome
(até , com
certeza , a moça
sem nome
do Relato de um
certo Oriente )
e envolvem-se diretamente na trama .
Os três narradores distanciam-se no tempo , com relação aos acontecimentos
narrados. A narradora do Relato, a partir de agora nominada
Moça Sem
Nome , depois
de quase vinte anos
de ausência , recolhe depoimentos sobre
acontecimentos muito
anteriores , e transcreve-os com a sua própria voz , que plana “como um pássaro gigantesco
e frágil sobre
as outras vozes ”. Nael, o narrador de Dois irmãos, organiza sua
narrativa , o material
que colhera durante
toda a vida ,
buscando uma resposta inalcançável,
somente na maturidade . Lavo começa a escrever suas memórias
apenas “uns vinte anos depois ” da culminância dos acontecimentos divulgados
em Cinzas do Norte.
Mas o ponto essencial
a observar sobre
as três narrativas
é que elas
são construídas sobre
as ruínas de três
casas : a casa
de Emilie, a casa de Zana e Halim e a casa de Jano e Alicia. Essa alegoria
benjaminiana da construção da narrativa
fundada nas ruínas da memória é arquitetada a partir
de estratégias narrativas
que envolvem a memória
do próprio narrador e de seus
informantes, gravações , entrevistas , cartas ,
depoimentos , relatórios
e até , em
Cinzas do Norte ,
uma narrativa paralela ,
feita pelo personagem Ranulfo, que
Lavo integra ao seu relato.
Mnemósine, a mãe das nove musas ,
preside a narrativa hatouniana, sem prescindir , entretanto , do auxílio
das filhas Melpómene, Calíope e Clio: a memória
da tragédia deixa-se envolver
num halo de poesia ,
infiltrando-nos na história , para lembrar-nos que
essas tragédias fazem parte do nosso cotidiano . Se da Grécia passarmos ao Oriente
e pensarmos em Sherazade como arquétipo
de narrador, teremos um
narrador-artesão, que tece, uma a uma, cada narrativa .
O narrador moderno , entretanto ,
não se limita a contar
histórias : a linguagem
é, em si
mesma , uma aventura .
Ele tem consciência
da fragmentação e do caos que
ordenam a paisagem ao seu redor – de
Manaus a Beirute , passando por Londres, Barcelona ou
São Paulo. Os narradores de Milton
Hatoum seguem a máxima benjaminiana: “contar
histórias sempre
foi a arte de contá-las de novo .”[2]
Isto quer
dizer preservar a memória em
relatos que não
são apenas
histórias contadas, mas
tramas arquitetadas em
limites de espaço
e de tempo marcados por
uma historicidade clara e definida .
HATOUM, Milton. Dois irmãos .
São Paulo: Companhia
das Letras , 2000.
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte . São Paulo: Companhia
das Letras , 2005.
[2]
BENJAMIN, Walter. O Narrador – considerações sobre
a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e Técnica ,
Arte e Política .
Trad. de Sergio Paulo Rouanet. 2ª ed. São
Paulo: Brasiliense , 1986, p. 205.