Amigos do Fingidor

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes 2007 – 5/7



Zemaria Pinto

IV

Autor de três romances que caminham para formar entre os clássicos da literatura brasileira, Milton Hatoum tem desnorteado a crítica literária, não pela dificuldade imposta aos seus leitores, como entendeu ser a finalidade da literatura durante muito tempo uma certa vanguarda, mas sim pela simplicidade narrativasimplicidade que é, no entanto, apenas aparente. Na verdade, Milton Hatoum radicaliza o significado primordial da palavra texto: urdidura, tecido, teia, trançado, entrelaçado.  
Tantas são as nuanças na arquitetura narrativa de Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte[1] que preferi, preterindo o autor, falar de suas obras, ou melhor, de um aspecto muito especial de suas obras: o narrador. Mas não quero entrar em matéria acadêmica; antes, quero recuperar a vida que pulsa nesses personagens-narradores: a moça sem nome de Relato de um certo Oriente, Nael, o neto bastardo de Dois irmãos, e Lavo, o memorialista de Cinzas do Norte. Pretendo demonstrar, nesta alocução, quealgo em comum entre essas criaturas; ou, tecnicamente, examinar a poética da narrativa no romance de Milton Hatoum.
Os três romances têm como matéria principal a vida na cidade de Manaus, a cidade que viu seu autor nascer há 54 anos. É claro que não é da sua experiência pessoal que ele fala, mas de histórias inventadas, que poderiam ser as histórias de sua família, de seus conhecidos, ou que ele simplesmente ouvira contar, na Pensão Fenícia da sua infância. Histórias criadas a partir da matéria-prima que a vida lhe oferece: a história pessoal do autor puxa a história da família, que se liga à história da cidade, que converge para a história do país, que deságua na história do nosso tempo...
muitos tipos de narradores. Simplifiquemos, dividindo-os em dois grandes grupos: os que participam da história diretamente e os que contam a história sem dela haver tomado parte.  A este grupo pertence o narrador onisciente, que o leitor desavisado, muitas vezes, confunde com o autor. Os narradores de Milton Hatoum pertencem ao primeiro grupo, são personagens, embora secundários, têm nome (até, com certeza, a moça sem nome do Relato de um certo Oriente) e envolvem-se diretamente na trama.
Os três narradores distanciam-se no tempo, com relação aos acontecimentos narrados. A narradora do Relato, a partir de agora nominada Moça Sem Nome, depois de quase vinte anos de ausência, recolhe depoimentos sobre acontecimentos muito anteriores, e transcreve-os com a sua própria voz, que planacomo um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes”. Nael, o narrador de Dois irmãos, organiza sua narrativa, o material que colhera durante toda a vida, buscando uma resposta inalcançável, somente na maturidade. Lavo começa a escrever suas memórias apenas “uns vinte anos depois” da culminância dos acontecimentos divulgados em Cinzas do Norte.
Mas o ponto essencial a observar sobre as três narrativas é que elas são construídas sobre as ruínas de três casas: a casa de Emilie, a casa de Zana e Halim e a casa de Jano e Alicia. Essa alegoria benjaminiana da construção da narrativa fundada nas ruínas da memória é arquitetada a partir de estratégias narrativas que envolvem a memória do próprio narrador e de seus informantes, gravações, entrevistas, cartas, depoimentos, relatórios e até, em Cinzas do Norte, uma narrativa paralela, feita pelo personagem Ranulfo, que Lavo integra ao seu relato.
Mnemósine, a mãe das nove musas, preside a narrativa hatouniana, sem prescindir, entretanto, do auxílio das filhas Melpómene, Calíope e Clio: a memória da tragédia deixa-se envolver num halo de poesia, infiltrando-nos na história, para lembrar-nos que essas tragédias fazem parte do nosso cotidiano. Se da Grécia passarmos ao Oriente e pensarmos em Sherazade como arquétipo de narrador, teremos um narrador-artesão, que tece, uma a uma, cada narrativa. O narrador moderno, entretanto, não se limita a contar histórias: a linguagem é, em si mesma, uma aventura. Ele tem consciência da fragmentação e do caos que ordenam a paisagem ao seu redor – de Manaus a Beirute, passando por Londres, Barcelona ou São Paulo. Os narradores de Milton Hatoum seguem a máxima benjaminiana: “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo.”[2] Isto quer dizer preservar a memória em relatos que não são apenas histórias contadas, mas tramas arquitetadas em limites de espaço e de tempo marcados por uma historicidade clara e definida.     




[1] HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[2] BENJAMIN, Walter. O Narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. de Sergio Paulo Rouanet. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 205.