Amigos do Fingidor

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Martin se prepara para morrer



Inácio Oliveira

         No dia em que morreria Martin acordou cedo. Barbeou-se com meticuloso cuidado com uma navalha enferrujada olhando-se no pequeno espelho pendurado num prego, pensou que talvez fosse aquela a última vez em que via o próprio rosto, sentiu como que uma saudade de si mesmo. Os primeiros raios de sol inflamavam a manhã. Porque era um homem sozinho Martin havia adquirido a calma perfeita de todas as coisas, ele nunca tinha pressa. Movia-se como se move um homem quando sabe que ninguém o está observando. Preparou o café levemente amargo como gostava, sorveu com imenso prazer pequenos goles do líquido escuro e quente. Observava a paisagem que amanhecia: as plantas úmidas de cerração, o pasto abandonado e o gado esquecido, o vale que cortava a propriedade e uma estrada perdida no horizonte. Ao longe uma cadeia de montanhas lembrava o desenho de uma criança. Quando o matassem ele não morreria, o que morreria seria o mundo visto por ele, Martin pensou isso com bastante lógica e retidão, assim como um engenheiro pensa. Esboçou um leve sorriso, satisfeito com o seu pensamento. Esperava aqueles que o matariam. Eles viriam, era certo. A história da sua vida ganhava um caráter trágico, ele se considerava um destino. Este seria o seu último dia e ao pensar nisso Martin foi tomado de um assombro, mas nada perturbava os seus gestos. Apenas seus pensamentos fervilhavam de milhares de possibilidades impossíveis. Pensou em tudo aquilo que poderia ter sido e que não foi, pensou em cada vez que disse não e deveria ter dito sim, cada vez que foi para a esquerda e deveria ter ido para a direita, tudo isso que ele pensava formava outro mundo, outra vida que parecia pertencer a outra pessoa diversa dele mesmo, e a única coisa que Martin podia ser era ele mesmo. Martin estava tão acostumado consigo mesmo que se surpreendeu imaginando-se diferente. Procurou não pensar mais nisso, agora ele selecionaria seus pensamentos para não desperdiçá-los. Martin pegou sua espingarda 12, observou a coronha gasta e suja da arma, pensou como ela seria bonita se fosse nova. Tocou o longo cano da 12, grosso demais para uma espingarda, era frio o metal em contato com sua pele. Havia três cartuchos vazios na cartucheira, há tanto tempo que ele não os usava. Ele preparou os cartuchos, colocou a espoleta, o chumbo, a pólvora e a esponja. Isso era inútil, ele sabia, porque os homens que o matariam não dariam tempo para que ele disparasse um único tiro, mas Martin prepara-se para defender-se assim como quem faz um ritual. Pensou numa tarde remota em que o pai o levou para dar o primeiro tiro, o impacto da espingarda em seu peito o jogou para trás, derrubando-o no chão e deslocando seu ombro. Martin ficara impressionado com a violência daquele instrumento. Já que pensou no pai ele pensa também na mãe e nos irmãos que morreram tão cedo, mas não quer pensar neles. Então imagina-se morto, o corpo sem vida; agora liberto de todo pensamento. Por um instante ele anseia a chegada daqueles que vão matá-lo. Martin acaba de preparar o último dos três cartuchos, coloca-o na espingarda e mira com ela um gato que adormece ao sol, se atirasse nele o gato se tornaria um bagaço de carne, ossos, pelo e sangue; no peito de um homem seria diferente. Martin caminha pela varanda da casa e já é manhã avançada, o calor que sobe pelas paredes vem carregado de uma crescente inquietação. Martin não consegue parar de pensar naquilo que deve acontecer a um homem um segundo depois que ele morre, na verdade Martin não pode saber disso, mas ele pensa nisso assim como se pensa num lugar que não se conhece. O que Martin pensa sobre a vida, sobre o mundo e sobre si mesmo é tão confuso que é como se ele pensasse duas coisas contrárias ao mesmo tempo, um pensamento invalidando o outro; um caos de onde resta o silêncio. Agora Martin está sentado na cadeira de embalo que pôs na varanda, a espingarda cruzada sobre as pernas. Se alguém o visse assim pensaria que ele está em transe, assim como fica um monge ou um vidente, mas ninguém jamais suspeitaria que sob as suas retinas escuras se passa o assombro de toda uma vida.