Amigos do Fingidor

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes 2007 – 7/7



Zemaria Pinto

Assim, temos caracterizados três tipos diferentes de narradores na obra de Milton Hatoum: em Relato de um certo Oriente, uma narradora-repórter, a Moça Sem Nome; em Dois irmãos, Nael é um narrador-investigador; em Cinzas do Norte, Lavo é um narrador-confidente, tanto do amigo Mundo, quanto de Alícia e do tio Ran. Esses três narradores têm muito em comum. A proximidade afetiva com a casa, por exemplo: a Moça Sem Nome, abandonada pela mãe, é adotada pela matriarca Emilie; Nael é filho da empregada Domingas e neto de Zana e Halim; Lavo é o melhor amigo de Mundo, filho de Jano e Alícia. Os três têm uma paternidade problemática: a Moça Sem Nome é adotada, como disse; Nael não sabe quem é seu pai, embora conviva com as duas alternativas, Omar e Yaqub; Lavo ficou órfão de pai e mãe ainda muito cedo, num acidente, sendo criado pelo tia Ramira. Construindo suas narrativas a partir das ruínas da memória e das casas, os narradores sobrevivem, em relação aos protagonistas Emilie, Zana, e Mundo – e após a morte destes divulgam seus relatos.
Aliás, Dois irmãos e Cinzas do Norte abrem com a informação da morte de Zana e Mundo, respectivamente, embora ainda não saibamos direito quem são eles. No Relato, também no texto de abertura, sabemos da iminência da morte de Emilie por uma frase dirigida à narradora: “dizem que tua avó há muito tempo não dorme”. Na verdade, não são apenas os protagonistas que desaparecem: as ruínas pontuam toda a narrativa – e onde a morte não alcançou prevalece a decadência. Não à toa, o próprio Milton Hatoum designa essa característica do narrador-sobrevivente comosíndrome de Sherazade”: narrar para não morrer.[1]
Nos três romances há uma paternidade a ser revelada, mas somente em Cinzas do Norte isso acontece, quando descobrimos, ao final da trama, quem é o pai biológico de Mundo. No Relato, desconhecemos a paternidade de Soraya Ângela; em Dois irmãos, não ficamos sabendo qual dos irmãos, afinal, é o pai de Nael. 
Outro ponto em comum nas três narrativas é o conflito familiar travado entre irmãos ou entre pai e filho. Esse conflito não é a causa da dissolução familiarantes, é consequência dela. A causa é atemporal e intangível, muito além do alcance do narrador e, mais ainda, do leitor. A família é um núcleo econômico antes de ser afetivo; afeto é consequência do convívio. A falência econômica leva à desagregação afetiva. Da mesma forma, a falência afetiva, se acontecer antes, leva à degradação econômicaou à separação de bens. Tudo desmorona diante dos impasses ditados pela competição instalada no ambiente familiar – seja entre irmãos ou entre pais e filhos.
Em Relato de um certo Oriente, Samara Délia, filha da matriarca Emilie, é perseguida pelos irmãos identificados simplesmente comoinomináveis”. A guerra declarada entre Yaqub e Omar é o tema central de Dois irmãos, mas a desavença entre o mesmo Omar e seu pai Halim é também muito marcante. Em Cinzas do Norte, o conflito principal dá-se entre Jano e Mundo, pai e filho. O conflito irmão versus irmão termina após a morte dos pais, pois sem pais nãoirmãos: rompe-se o elo hierárquico que mantém e justifica o embate. Sem pais, a hierarquia se parte e a família dissolve-se. Mas o conflito filho versus pai pode terminar com a morte de um ou de ambos, pois nãooutra forma de romper os liames que os unem. Em ambos os casos – reproduzidos na ficção de Milton Hatoum –, a família faz-se em ruínas.
Se Relato de um certo Oriente é o romance da reconstrução da memória e Dois irmãos, o romance da procura pela identidade negada, Cinzas do Norte mostra o dilaceramento a que se entrega o artista no ato criador: é o romance da dor – a dor da transgressão, da opressão e da incompreensão – “a dor de todas as tribos”. Três romances cuja recepção ainda está em curso, mas três obras que o tempo, esse arquiteto de ruínas, certamente irá fortalecer, cristalizando a paisagem por onde passeiam os personagens imaginados por Milton Hatoum. Háyat tauíli! Longa vida a Lavo, Nael e à Moça Sem Nome!

Meu caro Milton: você recebeu alguns dos principais prêmios e distinções que um escritor brasileiro almeja. E como você ainda é jovem (e isso me faz sentir-me jovem também!), ainda há muitas e muitas honrarias a receber, especialmente na sua carreira internacional. Não vamos espantar a concorrênciamas, para quem ganhou o Jabuti por três vezes, não será nada esperar por um Camões... E quem sabe a Academia de Literatura da Suécia lembra-se que no Brasil... Por enquanto, queremos agradecer por você ter vindo aqui, congratular-se conosco, aceitando nossa singela, porém sincera homenagem. As portas desta Casa – que foi de Péricles Moraes e hoje é de Elson Farias, de Thiago de Mello, José Braga, Francisco Gomes, Luiz Bacellar, Márcio Souza, Tenório Telles, Narciso Lobo, Rosa Mendonça de Brito, Carmen Nóvoa, Max Carphentier, Ruy Lins, Anisio Mello, Moacyr Andrade, Demósthenes Carminé, Mário Ypiranga Neto[2]  e tantos outros grandes companheiros –, as portas desta Casa, Milton, estarão sempre abertas a você.  

V

Meus caros Tadros, Ivete e Milton. Cumprimos mais uma etapa em nossa caminhada. Daqui a pouco mergulharemos todos de volta às singularidades de nossas vidas particulares. Mas esse tempo em que aqui estivemos reunidos se eternizará em nossos corações e mentes como um momento de ternura recíproca – dos acadêmicos para com vocês, de vocês para conosco, e de todos aqui presentes para com a memória de Péricles Moraes.
A salamo a-leikon. A paz esteja com todos.





[1] Entrevista a Julio Daio Borges. 2006. Publicada no site  www.digestivocultural.com
[2] Acadêmicos presentes à solenidade, com exceção do presidente Elson Farias e do decano Thiago de Mello, enfermos.