Zemaria Pinto
Assim, temos caracterizados três tipos diferentes
de narradores na obra de Milton Hatoum: em Relato de um certo Oriente , uma narradora-repórter, a Moça Sem Nome ; em Dois irmãos ,
Nael é um narrador-investigador; em Cinzas do Norte , Lavo é um
narrador-confidente, tanto do amigo Mundo , quanto de Alícia e do tio
Ran. Esses três
narradores têm muito em comum . A proximidade
afetiva com
a casa , por
exemplo : a Moça
Sem Nome ,
abandonada pela mãe ,
é adotada pela matriarca
Emilie; Nael é filho da empregada Domingas e neto
de Zana e Halim; Lavo é o melhor amigo de Mundo ,
filho de Jano e Alícia. Os três têm uma paternidade
problemática : a Moça
Sem Nome
é adotada, como já
disse; Nael não sabe quem é seu pai , embora conviva com as
duas alternativas , Omar e Yaqub; Lavo
ficou órfão de pai
e mãe ainda
muito cedo ,
num acidente , sendo criado
pelo tia
Ramira. Construindo suas narrativas a partir das ruínas da memória
e das casas , os narradores sobrevivem, em relação aos protagonistas Emilie, Zana, e Mundo
– e só após a
morte destes divulgam seus
relatos.
Aliás, Dois irmãos e Cinzas do Norte
abrem com a informação
da morte de Zana e Mundo ,
respectivamente , embora
ainda não
saibamos direito quem são eles . No Relato, também
no texto de abertura ,
sabemos da iminência da morte de Emilie por uma frase
dirigida à narradora: “dizem que tua avó
há muito tempo
não dorme”. Na verdade ,
não são
apenas os protagonistas
que desaparecem: as ruínas
pontuam toda a narrativa
– e onde a morte
não alcançou prevalece a decadência . Não
à toa , o próprio
Milton Hatoum designa essa característica do
narrador-sobrevivente como “síndrome de Sherazade”: narrar para não morrer .[1]
Nos três romances
há uma paternidade a ser
revelada, mas somente
em Cinzas do Norte isso acontece, quando
descobrimos, ao final da trama , quem é o pai biológico de Mundo. No Relato, desconhecemos a paternidade de Soraya Ângela; em
Dois irmãos ,
não ficamos sabendo qual dos irmãos , afinal ,
é o pai de Nael.
Outro ponto em
comum nas três
narrativas é o conflito
familiar travado entre
irmãos ou
entre pai
e filho . Esse
conflito não
é a causa da dissolução
familiar – antes ,
é consequência dela. A causa é atemporal
e intangível , muito
além do alcance
do narrador e, mais ainda ,
do leitor . A família
é um núcleo
econômico antes
de ser afetivo ;
afeto é consequência do convívio . A falência
econômica leva
à desagregação afetiva .
Da mesma forma ,
a falência afetiva ,
se acontecer antes ,
leva à degradação econômica
– ou à separação
de bens . Tudo
desmorona diante dos impasses ditados
pela competição instalada no ambiente familiar
– seja entre irmãos
ou entre
pais e filhos .
Em Relato de um
certo Oriente ,
Samara Délia, filha da matriarca Emilie, é perseguida pelos
irmãos identificados simplesmente como
“inomináveis ”. A guerra
declarada entre Yaqub e Omar é o tema central de
Dois irmãos ,
mas a desavença
entre o mesmo
Omar e seu pai
Halim é também muito
marcante . Em
Cinzas do Norte , o conflito principal dá-se entre Jano e Mundo ,
pai e filho .
O conflito irmão
versus
irmão termina após
a morte dos pais ,
pois sem pais não há irmãos : rompe-se o elo
hierárquico que
mantém e justifica o embate . Sem
pais , a hierarquia
se parte e a família
dissolve-se. Mas o conflito
filho versus pai só pode terminar com a morte de um ou de ambos , pois não há outr a forma de romper os liames que os
unem. Em ambos
os casos – reproduzidos na ficção de Milton Hatoum –, a família
faz-se em ruínas .
Se Relato de um
certo Oriente
é o romance da reconstrução
da memória e Dois irmãos , o romance da procura
pela identidade
negada, Cinzas do Norte mostra o dilaceramento a que
se entrega o artista
no ato criador :
é o romance da dor
– a dor da transgressão ,
da opressão e da incompreensão
– “a dor de todas as tribos”. Três romances cuja recepção ainda está em curso , mas três obras que o tempo , esse arquiteto
de ruínas , certamente
irá fortalecer , cristalizando a paisagem por onde passeiam os personagens
imaginados por Milton Hatoum. Háyat tauíli! Longa vida a Lavo, Nael e à Moça
Sem Nome !
Meu caro Milton: você
já recebeu alguns
dos principais prêmios
e distinções que
um escritor
brasileiro almeja. E como
você ainda é jovem (e isso me faz sentir-me jovem
também !), ainda
há muitas e muitas honrarias a receber , especialmente
na sua carreira
internacional . Não
vamos espantar a concorrência
– mas , para quem já ganhou
o Jabuti por três vezes , não será nada esperar por um Camões... E quem
sabe a Academia de Literatura
da Suécia lembra-se que no Brasil... Por enquanto ,
queremos agradecer por
você ter vindo aqui , congratular-se conosco ,
aceitando nossa singela ,
porém sincera
homenagem . As portas
desta Casa – que foi de Péricles Moraes
e hoje é de Elson Farias, de Thiago de
Mello, José Braga, Francisco Gomes, Luiz Bacellar, Márcio Souza, Tenório Telles,
Narciso Lobo, Rosa Mendonça de Brito, Carmen Nóvoa, Max Carphentier, Ruy Lins,
Anisio Mello, Moacyr Andrade, Demósthenes Carminé, Mário Ypiranga Neto[2]
e tantos
outros grandes
companheiros –, as portas desta Casa, Milton, estarão sempre
abertas a você .
V
A salamo a-leikon. A paz esteja com todos .
[2]
Acadêmicos presentes à solenidade, com exceção do presidente Elson Farias e do
decano Thiago de Mello, enfermos.