Amigos do Fingidor

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Ciclo Perverso


    
Inácio Oliveira

Sonho que estou pescando com o meu pai, assim como fazíamos quando eu era criança. Estamos numa canoa, mas ela não está dentro d’água. A canoa está sobre as nuvens, eu estou remando e ela avança vagarosamente. Meu pai está com o molinete nas mãos, o anzol dependurado no ar, parece muito concentrado como se estivesse à espera de um grande peixe.
Acordo na cadeira ao lado da sua cama com o pescoço dolorido. Observo meu pai dormir e do seu peito sai um ruído perturbador, ele tem o sono agitado como se estivesse sendo acometido por terríveis pesadelos. Logo ele vai acordar, as convulsões sempre o atacam no meio da noite. Quando meu pai tem esses acessos precisamos segurá-lo firme, senão ele cai da cama. Nos momentos em que as crises estão mais intensas os enfermeiros o amarram e ele fica se sacudindo na cama como um eletrocutado. Hoje fiquei segurando sua mão durante horas para que ele pudesse tomar o soro, depois ele ficou agitado e eu tive que segurá-lo com mais força para que ele não se ferisse.
Ontem quando cheguei ele parecia estar dormindo, mas estava apenas fraco demais para manter os olhos abertos. Beijei a sua testa, ele abriu os olhos e me reconheceu só depois de alguns segundos. Apertou a minha mão e disse, fazendo um grande esforço – Hoje eu vi a sua mãe. Minha mãe morreu há muitos anos, no entanto quando ele disse isso foi como se ela realmente estivesse ali. O vaso com flores na mesa e a toalha xadrez cobrindo seus pés me fizeram pensar nela, mas foi só por alguns segundos. Meu pai estava cagado em cima da cama. Chamei a enfermeira e ajudei a trocar sua fralda, a merda do meu pai era amarela e pastosa igual a vatapá. Fiquei pensando quantas vezes meu pai trocou a minha fralda no meio da noite e agora eu fazia o mesmo com ele, como se isso fosse um ciclo perverso que encontra no fim o seu começo.
A cama começa a sacudir com o meu pai se tremendo em cima, ele ergue o braço para o alto como alguém que está caindo e espera desesperadamente que o agarrem pela mão. Chamo um dos enfermeiros para que me ajude a segurá-lo, é incrível a força que meu pai adquire quando as convulsões o atacam, ele que normalmente não tem mais nem força para manter os olhos abertos. Já não podemos fazer quase nada, apenas imobilizá-lo e esperar que a crise passe.
Depois de um tempo ele se acalma. Quando o enfermeiro sai eu tranco a porta, pego o travesseiro no qual ele descansa a cabeça e o aperto contra o seu rosto com toda força de que eu sou capaz. Ele treme por alguns segundos e adormece lentamente. Tiro o travesseiro do seu rosto e o coloco de volta debaixo da sua cabeça, seus olhos estão abertos e sua boca pende para um lado. Fecho cuidadosamente seus olhos e ajeito sua boca. Ele parece tranquilo agora. Sento ao seu lado e fico olhando um longo tempo para ele. Vê-lo deitado imóvel na cama me dá um enorme sentimento de paz.