Amigos do Fingidor

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes 2014 – 4/5



Zemaria Pinto


IV

Conheci Alcides Werk no início dos anos 1980. Autodidata, Alcides ensinou-me muita coisa que os livros não ensinam. Teve a paciência – que eu não tenho com os jovens que me procuram – de corrigir meus textos imaturos, justificando cada crítica. E hoje eu digo, com paradoxal orgulho, que tive a humildade – que os jovens que me procuram quase nunca têm – de aceitar suas críticas.
Quando, ao final daquela década, fiz uma especialização em Literatura Brasileira, sob a orientação do mestre Marcos Frederico Krüger, o tema da minha dissertação não poderia ser outro senão o livro que eu aprendera a amar como sendo a própria identidade amazônica em poesia: Trilha dágua. Mais amadurecido, eu discutia com Alcides cada ponto do meu trabalho, antes de mostrá-lo ao meu orientador. Muitas vezes discordamos e algumas vezes eu mantive meu ponto de vista, mas ele não perdia o bom humor: “discute isso com o Marcos; se ele concordar contigo, tudo bem: 2 a 1 pra vocês.”
Alcides Werk Gomes de Matos nasceu em Aquidauana – hoje, no Mato Grosso do Sul – em 20 de dezembro de 1934. Filho de pai pernambucano e mãe gaúcha, neto de imigrantes alemães, Alcides dizia não se lembrar de passar um ano numa mesma localidade. Tendo perdido a mãe aos 10 anos, em Caracaraí, aos 14, separou-se do pai em Conceição do Araguaia, onde fez um curso de telegrafia, indo trabalhar em um posto de atração de índios Gaviões, no Tocantins, próximo de onde hoje está Tucuruí. Aos 17 anos, sentou praça em Belém. Aos 20, veio para Manaus, mas aqui não ficou muito tempo, embrenhando-se pelo interior, desde o Alto Solimões até o Baixo Amazonas. E como ele mesmo escreveu,
aventurando-me pelos altos rios, pelos paranás, pelos lagos distantes, abeberando-me do que ainda resta da cultura aborígine, do nosso ameríndio, do caboclo, aprendendo a viver com simplicidade.[1]
Em 1964, funcionário de carreira do Departamento de Correios e Telégrafos, foi para Recife, mas de lá retornou um ano depois, internando-se no Médio Amazonas – Maués, Nhamundá e áreas circunvizinhas –, onde viveu por 8 anos, longe dos desmandos da ditadura.
Aos 40 anos, o poeta nômade já estabelecido em Manaus como funcionário do DENTEL – Departamento Nacional de Telecomunicações, lançou seu primeiro livro: Da noite do rio, embrião daquele que viria a ser seu livro mais representativo, Trilha dágua, lançado em 1980. Quatro edições, sempre revistas e ampliadas, muitas antologias, e dois livros independentes depois – In natura, poemas para a juventude (1999) e Cantos ribeirinhos (2002), ambos com poemas de Trilha dágua e inéditos –, Alcides começou a organizar o seu livro definitivo, sua poesia completa, intitulado A Amazônia de Alcides Werk, que ele não chegou a revisar. O poeta faleceu pouco mais de um mês antes de completar 69 anos, em 13 de novembro de 2003.
Trilha dágua[2] e, por extensão, a poesia de Alcides Werk, é um livro onde a vida pulsa a cada poema, porque a “obra de arte é uma coisa viva”, já nos ensinou o poeta. Da sua vivência no interior do Amazonas, Alcides foi buscar a matéria prima para a sua poesia. Assim é que o livro, dividido em quatro partes mais um glossário, abre com o poema “Opção”, uma espécie de poética de Alcides, onde a relação “o homem e a terra”, título dessa primeira parte, é explorada num processo de sobreposição de imagens, que se vão toldando, até o arremate:
– Eu canto para o homem.
(p. 27-28)
Ao conceito de terra cansada, contrapõe-se a imagem do homem cansado, marginalizado. Ali estava feita a opção, que se desdobra em muitos outros poemas, como “Do homem”, onde o poeta define a abrangência, a intensidade e a profundidade de seu canto, revelando:
E toda lembrança
que trago comigo
é o Homem nascendo
é o Homem cantando
é o Homem caindo
é o Homem se erguendo
é o Homem domando
é o Homem tecendo
o imenso milagre
da aurora que vem.
(p. 30)
O ritmo amazônico vem embalado em versos curtos, de 5 sílabas, mesmo quando dissimulado em versos livres:
O barco passando e a onda molhando
o menino molhado, na porta da frente.
O homem doente
deitado na rede
com os olhos cansados de espanto e de mágoa
de ver tanta água
de ver tanta água
(p. 38)
São registros de vida que se sucedem, como se captados por uma câmera:
As águas do lago
no início da noite
são como um espelho
que o casco estilhaça
com a força do remo.
(p. 50)



[1] Alcides Werk, “Traços autobiográficos”, na antologia Marupiara. Manaus: Edições Governo do Estado, 1988. 
[2] WERK, Alcides. Trilha dágua. 5ª ed. Manaus: Valer/Governo do Amazonas, 2000.