Amigos do Fingidor

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Ritos de cura como hierofanias


João Bosco Botelho


Desde tempos ágrafos, homens e mulheres aliaram-se aos panteões lutando para entender, sem aceitar, passivamente, a brevidade da vida frente à natureza circundante. Reagiram se organizando para viver mais e melhor, desafiando a tirânica competência dos deuses e das deusas para controlar a vida, curar as doenças e os infortúnios.
Os ritos de curas como hierofanias (manifestação do sagrado) são muito anteriores se comparados às práticas médicas. Alguns sítios pré-históricos mostram claras comprovações, com mais de 10.000 anos, que membros da espécie homo utilizando artefatos cortantes executaram intervenções deliberadas e repetidas sobre os corpos, como as trepanações de crânios e amputações dos membros.
O aparecimento da palavra “médico” nas linguagens-culturas mesopotâmicas esteve associado ao forte marco identificador dos poderes pessoais desses especialistas sociais — curadores de todos os matizes — para intervir na doença, como pressuposta garantia para aumentar os limites da vida e sarar a dor fora de controle.
Curadores e médicos entendidos sob essa perspectiva — agentes sociais oriundos de muitas linguagens-culturas capazes de aumentar os limites da vida e sarar a dor fora de controle —, de lá para cá, como história de longa duração, mantiveram esse entendimento nos cinco continentes.
De lá para cá, quase quatro mil anos, os ritos religiosos de cura inseridos nas ideias e crenças religiosas nunca foram abandonados, mais ou menos valorizado em dependência das linguagens-culturas e dos bons ou maus resultados obtidos nos tratamentos mágicos. Em certos textos mesopotâmicos é difícil distinguir onde começava a prática médica e onde terminavam os ritos de curas.
Por outro lado, fora das análises acadêmicas, a maior parte das pessoas continua valorizando a ausência da dor, do mal, da doença como fruto da obediência às divindades. É possível que a arqueologia desse intricado nó entre as práticas de curas e as religiões esteja assentada nas antigas compreensões do pecado como sinônimo de doença. Entre os claros registros nas tábuas de escrita cuneiforme, achada na biblioteca de Hammurabi, um é particularmente interessante para demonstrar as práticas médicas atadas aos ritos de curas religiosos: assírios e babilônios entendiam o pecador como doente, débil, angustiado, possesso do demônio (utukku). Os termos sortilégio, malefício, pecado, doença, sofrimento aparecem como sinônimos. A libertação desse pecado, a doença, só seria obtida no rito religioso da confissão e da penitência.      
Essa compreensão do pecado ligado à doença como sinônimo do mal está mais claramente presente nas religiões que admitem o pressuposto da violação voluntária do livre arbítrio, contra a ordem divina, gerando culpa ao pecador, punido com a doença. Para apagar o pecado, o mal, a culpa, deve cumprir ritos de expiação: os da consciência, confissão e penitência; e os da obediência ao divino: rezas e sacrifícios.