Amigos do Fingidor

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes 2014 – 2/5



Zemaria Pinto
  
II

A história da Fazenda da Esperança[1] começou há 31 anos, de maneira casual e quase mesmo inverossímil: Nelson Giovaneli, incomodado com a presença de jovens que consumiam e vendiam drogas próximo a sua casa, na esquina das ruas Tupinambás e Guaicurus, em Guaratinguetá, São Paulo, aproximou-se deles, conquistou sua amizade e começou um trabalho que, a partir daquela esquina, ganharia o mundo.
Nelson tinha o apoio de frei Hans Stapel, franciscano alemão, pároco da igreja de Nossa Senhora da Glória, no bairro de Pedregulho, que pregava aos jovens como ele viver radicalmente a Palavra de Deus, de modo similar ao Movimento dos Folcolares, que frei Hans conhecera de perto. Aquele ato inicial tinha por inspiração a 1ª Epístola aos Coríntios, 9, 22: “Com os fracos tornei-me fraco, para ganhar os fracos; fiz-me tudo para todos, para por todos os meios salvar alguns.”[2] 
Antônio Eleutério foi o primeiro do grupo a ser contagiado pelas promessas de libertação de Nelson Giovaneli. Libertação da dependência química, libertação da humilhação cotidiana, libertação da relação de promiscuidade com a morte, libertação do inferno em vida.
A transformação do amigo infundiu confiança no resto do grupo. Sempre com o apoio de frei Hans Stapel, a proposta de viver radicalmente a Palavra tomou forma concreta: em junho de 1983, eles alugaram uma casa onde passaram a viver juntos, pagando as despesas com o resultado de seu próprio trabalho; e tudo o que ganhavam era colocado em um fundo, que tinha como único objetivo garantir-lhes a subsistência com dignidade, mantendo distância do vício avassalador. À noite, reuniam-se na igreja de N. Sra. da Glória, para discutir seus problemas comuns e levar uma palavra de conforto a outros jovens que, por iniciativa própria, começavam a buscá-la.
Estava fundada a primeira comunidade da Esperança. Estava plantada a semente do que logo passou a se chamar, pelas suas características próprias, Fazenda da Esperança. Aquela esquina primordial hoje abriga um pequeno museu, apropriadamente chamado de Esquina da Esperança.
Algumas datas marcantes: em 1987, em Coroatá, no Maranhão, foi fundada a primeira comunidade fora de São Paulo, liderada por um irmão de frei Hans, padre Paulo; em 1988, Iraci Leite e Lucilene Rosendo, tia de Nelson Giovaneli, fundaram a primeira comunidade feminina, em Guaratinguetá; em 1998, na terra natal de frei Hans, foi fundada a primeira comunidade fora do Brasil; em 2007, o papa Bento XVI visitou a Fazenda da Esperança de Pedrinhas, no interior de São Paulo, originada daquela primeira comunidade fundada por Nelson e Antônio Eleutério. Em seu discurso histórico, o papa exortou os presentes a serem todos “Embaixadores da Esperança”.
Hoje, a Obra Social Nossa Senhora da Glória – Fazenda da Esperança, o nome oficial da organização, está presente em quase todos os estados brasileiros, espalhando-se pela América, África, Europa e Ásia. E não para de crescer, pois, infelizmente, a dependência química é um câncer social.
Em Manaus[3], a Fazenda da Esperança foi fundada em 2001, com o nome de “Dom Gino Malvestio”, para atendimento do público masculino, com 15 vagas. Na verdade, aquele sonho começara quatro anos antes, quando Dom Gino Malvestio, bispo de Parintins, e Dom Mario Pasqualotto, pároco em Maués, receberam a visita de Frei Hans Stapel, visando a fundação de uma unidade em Parintins. Infelizmente, Dom Gino viria a falecer pouco tempo depois. Com a morte do mentor da ideia o projeto não avançou, mas ficou guardado no coração de D. Mario.
Em 2000, visando a Campanha da Fraternidade do ano seguinte – “Vida sim, drogas não!” –, já investido da condição de bispo auxiliar de Manaus, e contando com o apoio incondicional do arcebispo, o nosso querido confrade Dom Luiz Soares Vieira, Dom Mario Pasqualotto propôs a criação de uma Fazenda da Esperança em Manaus como uma ação concreta da arquidiocese à campanha “Vida sim, drogas não!”
E assim, no dia 29 de julho de 2001, com o indispensável apoio do governo do Estado, que doou o terreno de uma antiga Escola Fazenda e colaborou na recuperação dos velhos prédios, foi fundada a primeira unidade da Fazenda da Esperança no Amazonas, homenageando com o seu nome aquele que sonhara com ela anos antes: Dom Gino Malvestio.
Em 2005, foi inaugurada a unidade feminina “Irmã Cleuza Rody Coelho”, com 30 vagas. Ambas estão localizadas no Ramal Cláudio Mesquita, quilômetro 14 da BR-174. Hoje, a unidade masculina de Manaus está com a sua capacidade de atendimento ampliada para 100 jovens. Em São Gabriel da Cachoeira, foi inaugurada há dois anos a primeira unidade do interior do Amazonas, com 30 vagas destinadas ao público masculino.
Com uma metodologia alicerçada em três eixos – espiritualidade, trabalho e convivência, social e familiar – a Fazenda da Esperança tem logrado alcançar 80% de sucesso entre aqueles que, espontaneamente, se dispõem à recuperação. O tratamento dura 12 meses, mas continua com os grupos Esperança Viva, formados por aqueles que se submeteram com sucesso ao tratamento, e se tornam multiplicadores desse trabalho essencialmente voluntário.
Embora cada unidade seja também uma pequena indústria, com produções diversas, a Fazenda está longe de alcançar a autossustentabilidade, para o quê se torna indispensável o apoio da sociedade organizada e suas instituições, bem como o apoio do poder público, em todos os níveis. 
A muitos parecerá estranho que o reconhecimento pelo mecenato seja dado a uma instituição que não trabalha exatamente com a arte – o objeto do apoio de Mecenas, espécie de ministro sem pasta e fiel conselheiro do imperador Otávio Augusto, à época em que Jesus Cristo andou por este mundo. A intenção da Academia Amazonense de Letras, nos seus 96 anos de fundação, ao prestar esta singela homenagem à obra social Fazenda da Esperança, é reconhecer nessa instituição a incentivadora da maior de todas as artes: a arte de viver. O trabalho da Fazenda da Esperança floresce, aqui em Manaus, em São Gabriel da Cachoeira e nos mais longínquos rincões do mundo todo, como um canto à vida, que se renova cotidianamente, ou como uma sinfonia contra a barbárie, onde uma orquestra de milhares, conduzidas por um maestro invisível, eleva a sua ARTE contra a corrupção da juventude, contra o sequestro dos valores sociais e familiares, contra o vício das substâncias e das ideias, contra, enfim, a degradação do ser humano.

Nesta noite de extraordinária alegria, ouçamos o apelo do Sumo Pontífice: sejamos todos Embaixadores da Esperança!    




[1] Informações obtidas no endereço eletrônico www.fazenda.org,br, em abril de 2014.

[2] Bíblia Sagrada. 10. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1996. p. 1.362.
[3] Informações obtidas em entrevistas com D. Mario Pasqualotto e Sras. Izolda Barreto e Cláudia do Espírito Santo, por e-mail, em abril de 2014.