Amigos do Fingidor

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Lábios que beijei 45


Zemaria Pinto
Sônia


Aconteceu há quase 60 anos, de modo inesperado e casual, no entanto, permanece viva em minha lembrança a figura mignon e sardenta de Sônia. Eu caminhava pelo calçadão de Copacabana, em direção ao meu hotel, meio bêbado, às duas da manhã, quando fui abordado por ela: toda de branco, pequena, as curvas harmoniosas e delicadas, cabelos longos, negros, escorridos, a pele branca tomada pelas sardas. – Moço, paga um cafezinho? Pensei, por que não? Teria companhia para aquela última noite, antes de voltar para casa. E uma companhia agradável. Atravessamos, em busca de um boteco, fazia um frio digno dos melhores outubros. Começamos a conversar e percebi que Sônia era agradável não apenas por ser jovem e bonita: desenvolta, culta, apreciava a literatura francesa do século XIX, que aprendera a ler no original com as freiras do Sacré-Coeur, era leitora voraz dos poetas metafísicos brasileiros, que eu ignorava absolutamente, e era fã do Cinema Novo e da Nouvelle Vague. O sol apontava lento por trás do Arpoador quando fomos para o hotel. A cultura de Sônia não era apenas literária e cinematográfica: conhecia o Kama Sutra e outros manuais menos ilustres nos seus detalhes mais sublimes – e também nos mais sórdidos. Continuamos acordados, interrompendo o rito apenas para o café da manhã, ali pelas 8, e depois para o almoço, pouco depois das 13. Quando já não víamos mais resquícios do sol entrando pela janela que dava para a praia, decidi que era hora de nos despedirmos. Sônia fez questão de acompanhar-me ao aeroporto. Acedi. Na hora da despedida, ela chorava, soluçando, como se nos conhecêssemos há décadas e eu estivesse indo para o front. Não trocamos contatos. Sabíamos que era a última vez que nos víamos, embora fosse também a primeira. Já dentro do avião, fui tomado por um súbito sentimento de perda e não pude conter as lágrimas. Mas era tarde.