Amigos do Fingidor

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Medalha do Mérito Cultural Péricles Moraes 2014 – 3/5



Zemaria Pinto


III

Para classificar de maneira clara e objetiva o trabalho de Sergio Cardoso, utilizei, parágrafos atrás, a expressão “arte multifacetada”, que, acredito, substitui com vantagens o surrado clichê do multi-instrumentista, mesmo porque Sergio Cardoso não se vale de múltiplos instrumentos, mas apenas de dois conjuntos deles: os seus olhos e as suas mãos. Os sentidos se amalgamam e se amoldam, deixando que os olhos toquem e as mãos vejam e a criação seja algo para além dos sentidos convencionados pela obviedade cotidiana.
Pintura, fotografia, cinema, teatro – a arte de Sergio Cardoso traduz-se no embate dialético entre imagem e movimento, que tem como resultante sinérgico uma obra de arte de alta expressão.
Amazonense de Manaus, Sergio Cardoso, a par da formação artística, não descuidou de sólida formação profissional. Advogado, é procurador efetivo da Procuradoria Geral do Estado. Administrador cultural, tem várias especializações na área, em programas de formação nacionais e internacionais, consolidadas pela experiência prática em vários cargos públicos, entre os quais o de Superintendente da Televisão Educativa do Amazonas, o de titular da Superintendência Cultural do Estado, diretor do Centro Cultural Cláudio Santoro, de saudosa memória, e do Centro Cultural Palácio Rio Negro. Atualmente, é diretor do Departamento de Difusão Cultural da Secretaria de Estado da Cultura.
Como artista de múltiplas faces, sua maior característica é a inquietude, exatamente aquela inquietude que Péricles Moraes via em Violeta Branca: a inquietação da busca, da procura constante e, sobretudo, do questionamento permanente. Não satisfeito com a pintura, Sérgio enveredou pela fotoplastia, um conceito ainda não encontrável nos manuais de arte acadêmica. Seus experimentos já foram mostrados em várias exposições e até há poucos dias estavam à vista em Harborligths. Espere a próxima quem perdeu. Harborlights trazia uma série de fotografias, com interferências plásticas e textuais, do lado podre do porto de Manaus, o trecho da antiga Manaus Moderna, tomada por mendigos, bêbados e drogados de todos os matizes. Um delírio magrittiano:
cidade
podre paisagem truculenta transcendente pobreza instalada onde um dia a miséria da cidade flutuante foi transposta aos limites suburbanos da cidade mutante onde um dia a mata foi violada e seu vestido verde incinerado e os meninos curupiras transgrediram a dimensão do sonho e cavalgando alados cavalos da memória foram habitar o palácio esculpido  no rochedo onde um dia um magritte flutuou balões de gente as luas no museu de tudo figurado em melancia a cona escancarada em riso de deboche ó noite ó grafites a fenda no muro o rio aberto em mar os barcos ancorados no horizonte as coxas da cidade ávidas expostas ao membro dissoluto fotografias da cidade desfeita em urina e fezes não não haverá dia não haverá o delírio das cores aquecidas pelo degelo dos andes pelo desejo das ondas onde dantes havia apenas a água transparente do rio negro onde um dia profetas alienados esculpiram versículos definitivos e definidores destinados a eternizar a guerra sob a falsa paz que transcende a cidade anabolizada a pobreza da paisagem podre da cidade[1]

A fotografia e o cinema fizeram o século XX acreditar, durante muito tempo, que a pintura e a escultura e todos os seus derivados haviam se esgotado – a arte morreu! Mas a arte não morre, ela se retempera, se renova e se reinventa. Como em Oh City – Stages, a penúltima exposição de Sérgio Cardoso, onde fotografia, cinema e pintura conviveram pacificamente, desnudando a violência da cidade:
Oh City – Stages foi uma exposição em movimento, cinética, ou como escreveria Glauber, kynetyka, fazendo longas ilações sobre a rede nazistalinista que se infiltra na palavra e na vida de todos nós, sem identidade e sem vontade, reduzidos a meros pontos no universo abstrato sergiocardosiano.
Uma exposição do deslocamento: nos videocines, o movimento de autos, o movimento de gente. Nas fotos, o desfoco era o foco. Em Therminalcódigos e Ethereoplanoviario, as máquinas de triturar almas, os corpos sem almas, os rostos amorfos, meros pontos nos quadros.
Duas câmeras fixas registraram a sandice do trânsito de automóveis na Barbarapólis. Em outro plano, uma câmera fixa registrava o vai e vem na orla do mercadogrande. Num, o tempo do quando, instantâneo esquizofrênico instante. Noutro, o tempo do sempre, da repetição lerda, lesmática, neurótica. Um: aves rapaces rapinam, sangrando os fígados das máquinas. Outro: vermes bípedes, em movimentos centrípetos, indo do nada para o nada e ao nada retornando, mas sempre adiante, reafirmando a autofagia do eterno retorno: não precisamos de luz.[2]

Ao marasmo da arte decorativa, o artista inquieto se doa por inteiro e transfunde seu sangue para injetar vida em sua arte porque “uma obra de arte é uma coisa viva; qualquer obra de arte será viva ou não será arte”[3]. Esta frase magistral do poeta Ferreira Gullar justifica porque não nos limitamos a fazer aqui um inventário das exposições de Sergio Cardoso. São tantas dezenas delas, seria cansativo. Prefiro instigá-los a olhar com olhos de pensar, e dizer que, na próxima oportunidade, não se furtem a descobrir a vida que pulsa na arte em movimento de Sérgio Cardoso.
Movimento que se observa sobretudo no teatro, para o qual Sérgio tem sido, ao lado de Márcio Souza, o mais fértil autor amazonense, chegando mesmo a criar um universo próprio – uma cidade, Lazone, à margem do rio das Sombras, com um teatro imponente, galerias subterrâneas, uma cidade flutuante e personagens que transitam de uma peça a outra, num grande painel suprarreal.
Lazone está para Sérgio Cardoso como o condado de Yoknapatawpha está para o norte-americano William Faulkner. Poucos de vocês sabem disso, porque o autor não se deu ao trabalho de divulgá-lo, mas, no ano passado, Sergio Cardoso reuniu dez de suas peças em um livro com mais de 350 páginas, intitulado O livro do teatro urbano das mulheres de Lazone, onde ele
trabalha sobre um fio de navalha: humor e tragédia se misturam, em cenas antinaturalistas, com uma agilidade cinematográfica. Não à toa, o cinema é uma referência constante, seja no nome das personagens seja nas inúmeras citações de títulos clássicos. Tudo potencializado, as situações criadas, de um humor amargo, aproximam-se do dramalhão hollywoodiano das primeiras décadas do cinema falado, com pitadas de noir; mas algumas figuras monstruosas remetem ao expressionismo alemão.
As mulheres de Lazone reinventam a história da cidade de Manaus, desde a crise da borracha até a primeira década deste início de século, contemplando exatos cem anos de imaginação a serviço da fantasia, onde convivem em deliciosa desarmonia cobras-grandes, vampiros, tartarugas radioativas, mendigos, loucos, socialites, prostitutas, malandros, políticos corruptos, fantasmas diversos e toda uma fauna de criaturas aprisionadas no dia a dia da cidade. E a despeito da grande quantidade de personagens a transitar no palco, a solidão das protagonistas – muito mais que a geografia e a história comuns – é o fio que costura as peças, dando-lhes unidade, estabelecendo vasos comunicantes entre elas, como num corpo vivo, montando esse extraordinário painel da arte cênica amazonense.
Mundica, Gilda, Carmem, Dorothy, Mercedita e todas as outras são mais que meras criações da mente inquieta de Sergio Cardoso: são arquétipos de mulheres que pintaram, com tintas épicas, a história cotidiana, banal, medíocre, desta cidade abrasadora, à margem esquerda do rio Negro.[4]
                
               Imagem e movimento, opostos sintetizados na imagem em movimento do cinema ou do teatro, são conceitos realizados plenamente na arte plural de Sergio Cardoso, arte que valoriza, eleva e dignifica o fazer artístico no Amazonas.


[1] Zemaria Pinto. Texto incluído no folder da exposição Harborlights, que ficou de 27 de março a 23 de abril, no Espaço de Thiago de Mello, da Livraria Saraiva, em Manaus.
[2] Zemaria Pinto. Adaptado de O caos em construção – um olhar crítico-poético sobre Oh City – Stages. In: Revista Valer Cultural. Ano 1, nº 8, dez/jan 2014. Páginas 72-75.
[3] GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a morte da arte. 8ª ed., 1ª reimpressão. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 132.
[4] Zemaria Pinto. Adaptado da apresentação de O livro do teatro urbano das mulheres de Lazone, de Sergio Cardoso. Manaus: Valer, 2013. Páginas 19-20.