Amigos do Fingidor

quinta-feira, 7 de abril de 2016

A sacralidade ancestral do cérebro



João Bosco Botelho

Quaisquer que tenham sido os motivos que levaram os nossos ancestrais distantes, há 10.000 anos, praticarem a craniotomia (trepanação ou a abertura do crânio), não podem ser dissociados à busca do escondido atrás da pele.
Outros registros da paleopatologia fazem supor a existência de indivíduos que se especializaram para tratar as doenças. As fraturas secundárias ao trauma não teriam sido curadas, com a completa consolidação, sem os cuidados de imobilização, feito por outra pessoa, seguida do repouso necessário. Desta forma, se tornava necessá­rio não só a ação consentida do curador, mas também do ato cooperativo entre outros membros do grupo social na oferta do alimento e na proteção.
Permanece como um marco nas atitudes do homem na busca dos mistérios do corpo, os crânios trepanados na pré‑história. Muitos desses crânios foram abertos cirurgicamente, em diferen­tes lugares da Europa. Alguns indivíduos subme­tidos à trepanação sobreviveram por longo tempo, o suficiente para que as bordas do osso cortado se regenerassem.
O local escolhido do acesso para cortar os espessos ossos cranianos parece ter tido uma significação específica, também não esclarecida. Alguns povos faziam a craniotomia no osso temporal, ou­tros do parietal, retirando pedaços com forma geométrica diferente, de poucos centímetros, até grandes aberturas, como a do crânio achado em Collombey‑Muraz, na Suíça, da qual o doente não sobreviveu.
A diversidade de como foram feitas contribuiu para pressupor que as trepanações fizeram parte de um conjunto maior de intervenções do homem no corpo humano. O curador deixou de ser mero espectador para tentar mudar, com a ação dele, o curso da saúde.
Não importa quais tenham sido os motivos para a concordância do paciente e do curador, respectiva­mente, para aceitar e fazer a intervenção, o fato é que foram realizadas e é pouco provável que tenham sido todas praticadas sob violência.
Os pesquisadores continuam a acirrada discussão acerca das indicações da cirurgia. Alguns acham que eram feitas com objetivo pura­mente religioso; outros apostam que existiu tentativa para sanar alguma queixa grave e permanente. Todavia, é indiscutível que em ambas as alternativas, aceitaram o pressuposto de que o objetivo a ser alcançado estava alojado dentro do crânio.  
O extraordinário é o fato de que, no século 18, os viajantes das ilhas no Pací­fico sul, asseguraram que o ritual da craniotomia entre aqueles povos era executada para retirar os demônios causadores de doenças.
Igualmente assombroso nas culturas pré‑incaicas, notadamente na Tiawanaku, e na incai­ca, a comprovação nas escavações arqueológicas das múmias magnifi­camente conservadas que foram submetidas à trepanação em vida.
A pergunta lógica, até hoje sem resposta, seria saber porque certas culturas que não mantiveram relações inter-étnicas, em intervalo de tempo tão longo, tenham realizado o mesmo procedimento: abertura intencional dos ossos do crânio.

Essa busca do "mais importante dentro da cabeça" pode estar ligada ao culto do crânio, com comprovação arqueológica de 15.000.  O conhecimento empírico impôs a certeza da maior importância do conteúdo do crânio: o trauma na cabeça tinha consequências imediatas muito mais graves do que outra na perna. Não é impossível que essa observação do conhecimento empírico – o maior valor do crânio em relação às partes do corpo – ter motivado o acesso ao crânio como parte sagrada do corpo.