Amigos do Fingidor

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Produto da terra cultivada, usado como remédio: o guaraná



João Bosco Botelho

Pode ter sido na transição para o sedentarismo que tenham se consolidado as idéias religiosas em torno da agricultura, gerando elementos gestuais e nas linguagens, compreendendo os alimentos como remédios. Desse modo, é admissível teorizar tanto em torno do fenômeno empírico a magia da terra onde brotava o alimento – quanto no mistério do tempo‑espaço visível a contínua renovação da vida.
É certo que existem contundentes exemplos dessa compreensão sagrada dos alimentos que se manifestam em mitos e ritos relacionando a terra cultivada à garantia de viver mais e poder empurrar os limites da morte.
Pela complexidade da repetição, essas construções míticas e rituais não podem ser exclusivamente sociais: estão presentes em linguagens-culturas distantes milhares de quilômetros entre si, guardando elementos significantes incrivelmente semelhantes.
Dois exemplos são particularmente impressionantes.
O primeiro, na ilha do Ceram, na Nova Guiné: do corpo retalhado da jovem divina Hainuwele, crescem plantas até então desconhecidas que oferecem o alimento para as pessoas viverem.
O segundo, em algumas partes dos rios Andirá e Maués: a morte do filho da índia Onhiamuacabe seguido do renascimento por meio dos olhos plantados na terra molhada, do esquerdo, originando o falso guaraná uaraná‑hôp e do direito, o verdadeiro guaraná uaraná‑cécé que seria usado para alimentar e curar as doenças.
De modo geral, nos quatro cantos do mundo, o valor dos mitos relacionados à terra cultivada é semelhante: os alimentos são sagrados por derivarem do corpo da divindade mãe-terra e devem ser utilizados na manutenção da vida. Como a vida só pode ser assegurada sem doença, o alimento oriundo da terra também embutiu o senso de remédio.
Com a sagração de alguns vegetais, os necessários à vida, o fruto da terra cultivada se incorporou à coisa sagrada. Sob essa perspectiva, é possível entender algumas passagens:
Sl 104, 13‑15: “De tuas altas moradas regas os montes, e a terra se sacia com o fruto de tuas obras; fazes brotar relva para o rebanho e plantas úteis ao homem, para que da terra ele tire o pão e o vinho, que alegra o coração do homem; para que ele faça o rosto brilhar com o óleo, e o pão fortaleça o coração do homem”.
Gn 28, 20: Jacó fez este voto: “Se Deus estiver comigo e me guardar no caminho por onde eu for, se me der pão para comer e roupas para me vestir, se eu voltar são e salvo para a casa de meu pai, então Iahweh será meu Deus e esta pedra que ergui como uma estela será uma casa de Deus, e de tudo o que deres eu te pagarei fielmente o dízimo”.
Lc 11, 2-3: Respondeu-lhes: “Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja o teu Nome; o pão nosso cotidiano dá-nos a cada dia, perdoa-nos os nossos pecados, pois também nós perdoamos aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação”.
Culminando com o rito da eucaristia: Jo 6,48‑52: “Eu sou o pão da vida. Vossos pais no deserto comeram o maná e morreram. Este pão é o que desce do céu para que não pereça quem dele comer. Quem comer deste pão viverá eternamente. O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo”. 
As práticas médicas surgidas nas sociedades ágrafas curadores de todos os matizes continuaram e se consolidaram nos aldeamentos. Não resta dúvida de que, a terra cultivada, eles também sofreram a influência da passagem da oralidade para a escrita, favorecendo a guarda e a reprodução dos saberes construídos empiricamente.