João Bosco Botelho
Pode ter sido na transição para o sedentarismo que tenham se consolidado
as idéias religiosas em torno da agricultura, gerando elementos gestuais e nas
linguagens, compreendendo os alimentos como remédios. Desse modo, é admissível teorizar
tanto em torno do fenômeno empírico – a magia da terra onde brotava o alimento – quanto no mistério do tempo‑espaço
visível – a contínua renovação
da vida.
É certo que existem contundentes exemplos dessa compreensão sagrada dos
alimentos que se manifestam em mitos e ritos relacionando a terra cultivada à
garantia de viver mais e poder empurrar os limites da morte.
Pela complexidade da repetição, essas construções míticas e rituais não
podem ser exclusivamente sociais: estão presentes em linguagens-culturas distantes
milhares de quilômetros entre si, guardando elementos significantes incrivelmente
semelhantes.
Dois exemplos são particularmente impressionantes.
O primeiro, na ilha do Ceram, na Nova Guiné: do corpo retalhado da jovem
divina Hainuwele, crescem plantas até então desconhecidas que oferecem o
alimento para as pessoas viverem.
O segundo, em algumas partes dos rios Andirá e Maués: a morte do filho
da índia Onhiamuacabe seguido do renascimento por meio dos olhos plantados na
terra molhada, do esquerdo, originando o falso guaraná – uaraná‑hôp – e do direito, o
verdadeiro guaraná – uaraná‑cécé – que seria usado
para alimentar e curar as doenças.
De modo geral, nos quatro cantos do mundo, o valor dos mitos relacionados
à terra cultivada é semelhante: os alimentos são sagrados por derivarem do
corpo da divindade mãe-terra e devem ser utilizados na manutenção da vida. Como
a vida só pode ser assegurada sem doença, o alimento oriundo da terra também
embutiu o senso de remédio.
Com a sagração de alguns vegetais, os necessários à vida, o fruto da
terra cultivada se incorporou à coisa sagrada. Sob essa perspectiva, é possível
entender algumas passagens:
Sl 104, 13‑15: “De tuas altas moradas regas os montes, e a terra se
sacia com o fruto de tuas obras; fazes brotar relva para o rebanho e plantas
úteis ao homem, para que da terra ele tire o pão e o vinho, que alegra o
coração do homem; para que ele faça o rosto brilhar com o óleo, e o pão fortaleça
o coração do homem”.
Gn 28, 20: Jacó fez este voto: “Se Deus estiver comigo e me guardar no
caminho por onde eu for, se me der pão para comer e roupas para me vestir, se
eu voltar são e salvo para a casa de meu pai, então Iahweh será meu Deus e esta
pedra que ergui como uma estela será uma casa de Deus, e de tudo o que deres eu
te pagarei fielmente o dízimo”.
Lc 11, 2-3: Respondeu-lhes: “Quando orardes, dizei: Pai, santificado
seja o teu Nome; o pão nosso cotidiano dá-nos a cada dia, perdoa-nos os nossos
pecados, pois também nós perdoamos aos nossos devedores; e não nos deixes cair
em tentação”.
Culminando com o rito da
eucaristia: Jo 6,48‑52: “Eu sou o pão da vida. Vossos pais no deserto comeram o
maná e morreram. Este pão é o que desce do céu para que não pereça quem dele
comer. Quem comer deste pão viverá eternamente. O pão que eu darei é a minha
carne para a vida do mundo”.
As práticas médicas surgidas nas sociedades ágrafas – curadores de
todos os matizes – continuaram e se consolidaram nos aldeamentos. Não resta dúvida de que,
a terra cultivada, eles também sofreram a influência da passagem da oralidade
para a escrita, favorecendo a guarda e a reprodução dos saberes construídos
empiricamente.