Inácio Oliveira
A enchente começou
em uma manhã de segunda-feira. Quando acordamos, os degraus que desciam do
assoalho haviam sumido debaixo d’água. Já não era possível descer as escadas e
caminhar até a praia como no verão. O rio começou a subir, disse o meu pai
cuspindo um resto de tabaco. Eu já sabia porque desde a noite passada ouvia-se
o rumor das águas. Pelo resto da manhã ficamos, minha irmã e eu, olhando
o rio crescer lentamente. Estávamos felizes porque aquilo era algo em que
podíamos confiar: a enchente e depois a vazante. Podíamos confiar na natureza. Fizemos
uma arca na cerca para ver quantos dias a água levaria para atingir; no final
da tarde já havia ultrapassado aquela marca. Quando mamãe serviu o jantar todos
comeram em silêncio ouvindo o rio passar por debaixo da nossa casa, como se
isto fosse algo solene. Sentia-se o rio enchendo como quando se enche um jarro
com água.
Durante a noite
ventou forte, as árvores remexidas pelo vento davam a impressão de uma revoada
de pássaros ferozes. Achávamos que ia chover, mas o resto da noite foi de calor
e sufocação. Lembrei-me daquela noite, já distante, em que Verônica esteve
conosco pela última vez. Com o vento, a corda que sustentava a canoa ao mourão
se rompeu e na terça-feira pela manhã vimos nossa canoa descendo o leito do rio
numa viagem impossível. Agora estávamos presos em casa, a terra firme estava a
quilômetros de distância. Se alguém pulasse n’água e fosse nadando à tardinha
chegaria no outro lado, meu pai disse isso sabendo que ninguém jamais pularia
no rio para escapar da enchente. O nosso mundo se tornara líquido.
Depois de três
dias os animais continuavam em pé em cima da maromba espantando os mosquitos
com o rabo, sustentados apenas pelo hábito de estarem vivos. Uma vaca ajoelhou
e cedeu sob o peso da longa espera precipitando-se no rio, pôs a cabeça para
fora e se deixou ser arrastada pela correnteza; afundou lentamente, deixando
uma espuma branca sobre a água. O rio engole tudo, disse a minha mãe. Agora
podíamos ver apenas a copa das árvores sobre as águas. O pé de jenipapo tinha
as folhas felizes no meio da enchente. Na sexta-feira choveu o dia todo, a
chuva caindo sobre a água me deu a ideia de uma coisa triste, algo sem nenhum
propósito. Sem que percebêssemos a enchente havia tomado conta também dos
nossos sentidos.