Amigos do Fingidor

segunda-feira, 23 de maio de 2016

A enchente



Inácio Oliveira

           A enchente começou em uma manhã de segunda-feira. Quando acordamos, os degraus que desciam do assoalho haviam sumido debaixo d’água. Já não era possível descer as escadas e caminhar até a praia como no verão. O rio começou a subir, disse o meu pai cuspindo um resto de tabaco. Eu já sabia porque desde a noite passada ouvia-se o rumor das águas. Pelo resto da manhã ficamos, minha irmã e eu, olhando o rio crescer lentamente. Estávamos felizes porque aquilo era algo em que podíamos confiar: a enchente e depois a vazante. Podíamos confiar na natureza. Fizemos uma arca na cerca para ver quantos dias a água levaria para atingir; no final da tarde já havia ultrapassado aquela marca. Quando mamãe serviu o jantar todos comeram em silêncio ouvindo o rio passar por debaixo da nossa casa, como se isto fosse algo solene. Sentia-se o rio enchendo como quando se enche um jarro com água.
           Durante a noite ventou forte, as árvores remexidas pelo vento davam a impressão de uma revoada de pássaros ferozes. Achávamos que ia chover, mas o resto da noite foi de calor e sufocação. Lembrei-me daquela noite, já distante, em que Verônica esteve conosco pela última vez. Com o vento, a corda que sustentava a canoa ao mourão se rompeu e na terça-feira pela manhã vimos nossa canoa descendo o leito do rio numa viagem impossível. Agora estávamos presos em casa, a terra firme estava a quilômetros de distância. Se alguém pulasse n’água e fosse nadando à tardinha chegaria no outro lado, meu pai disse isso sabendo que ninguém jamais pularia no rio para escapar da enchente. O nosso mundo se tornara líquido.
           Depois de três dias os animais continuavam em pé em cima da maromba espantando os mosquitos com o rabo, sustentados apenas pelo hábito de estarem vivos. Uma vaca ajoelhou e cedeu sob o peso da longa espera precipitando-se no rio, pôs a cabeça para fora e se deixou ser arrastada pela correnteza; afundou lentamente, deixando uma espuma branca sobre a água. O rio engole tudo, disse a minha mãe. Agora podíamos ver apenas a copa das árvores sobre as águas. O pé de jenipapo tinha as folhas felizes no meio da enchente. Na sexta-feira choveu o dia todo, a chuva caindo sobre a água me deu a ideia de uma coisa triste, algo sem nenhum propósito. Sem que percebêssemos a enchente havia tomado conta também dos nossos sentidos.