João Bosco Botelho
Os
professores das faculdades de medicina que convivem com os alunos dos primeiros
períodos percebem, sem dificuldade, nas expressões gestuais, o imenso orgulho
de eles estarem na faculdade, e, especialmente, o cuidadoso uso das batas
brancas com a serpente enrolada no bastão bordada no bolso ou na manga. Os mais
entusiasmados ainda exibem as canetas e chaveiros enfeitados com a serpente.
A
ancestral relação, datando de 2500 anos, da serpente como símbolo de cura, já
estava presente na teogonia e na teofania mesopotâmicas. No complexo panteão de
deuses e deusas curadores, se destacam: Ningischzida, filho de Ninurta,
representado pelas duas serpentes enroladas no bastão, e Sachan, a
deusa-serpente.
Simultaneamente,
talvez como sequência teogônica, a narrativa mítica do herói Gilgamesh, o rei sumério,
da cidade-estado de Uruk (hoje em dia Warka, no Iraque), a serpente se
relaciona à vida eterna. Essa extraordinária narrativa, recuperada na tradução
de doze tábuas de argila, infelizmente incompletas, encontradas por arqueólogos,
em Nínive, na antiga Acádia, escrita em linguagem acádia, durante o reinado de
Assurbanipal (668-627 a.C.).
A descrição desse épico explica,
inicialmente, a natureza de Gilgamesh como sendo mais divino que humano, mas também
reconhecido como construtor e guerreiro, simultaneamente, tirano e despótico.
Os deuses, atendendo às súplicas do povo, enviaram Enkidu para matar Gilgamesh.
A luta titânica não resultou em vencedor e vencido. Ao contrário, os dois tornaram-se
amigos e partiram para novas aventuras. Longe de Uruk, enfrentam Huwawa, o
guardião divino dos bosques de Cedro. Apesar de faltarem partes das tábuas que
contam parte da história, é possível deduzir que Gilgamesh derrota Huwawa.
Voltando para Uruk, Ishtar, a deusa do amor e da fertilidade propõe-lhe
casamento. Gilgamesh sabendo do triste destino dos homens que se uniram a ela
recusa o convite. Ishtar, enciumada e colérica, convence o pai a enviar o touro
celestial para matar Gilgamesh. Ele e Enkidu enfrentam e derrotam o monstro.
Por ter participado do duelo, Enkidu recebe a ameaça de castigo em sonho,
quando os três deuses, Anu, Ea e Shamah, dizem-lhe que irá morrer em breve.
Como previsto, adoece e morre. Gilgamesh, desconsolado chora a morte de seu
amigo e parte numa perigosa viagem em busca do sábio Ut-Napishtim, único sobrevivente
do dilúvio, justo e piedoso no meio da barbárie e da injustiça, que possui o
segredo da imortalidade.
Os deuses mandaram Ut-Napishtim
construir um barco no meio do deserto e esperar o pior. Durante seis dias e
seis noites, aconteceu o dilúvio, tão intenso que até os deuses se assustaram.
Gilgamesh sobreviveu ao dilúvio e quando o nível das águas baixou, surgiu a
nova Mesopotâmia.
Na busca da imortalidade, Gilgamesh
ouve do imortal Ut-Napishtim que a planta da vida eterna está no fundo de um
lago, e parte na busca da imortalidade. Como sempre, enfrentando muitos
desafios, triunfa. No caminho de volta a Uruk, cansado, descansa na margem do
lago e, ao acordar, vê a serpente roubar a planta milagrosa; após engoli-la,
rejuvenesce, mudando a pele. Nada mais resta a Gilgamesh a não ser chorar,
amargamente, a perda da imortalidade.
Desse modo, é admissível estabelecer
relações históricas e míticas entre as batas dos estudantes de medicina, a
serpente representando o deus Ningishzida e o mito de Gilgamesh, todas como
metamorfoses da luta épica contra a morte.