Amigos do Fingidor

quinta-feira, 12 de maio de 2016

A serpente como símbolo da cura



João Bosco Botelho

           Os professores das faculdades de medicina que convivem com os alunos dos primeiros períodos percebem, sem dificuldade, nas expressões gestuais, o imenso orgulho de eles estarem na faculdade, e, especialmente, o cuidadoso uso das batas brancas com a serpente enrolada no bastão bordada no bolso ou na manga. Os mais entusiasmados ainda exibem as canetas e chaveiros enfeitados com a serpente.
           A ancestral relação, datando de 2500 anos, da serpente como símbolo de cura, já estava presente na teogonia e na teofania mesopotâmicas. No complexo panteão de deuses e deusas curadores, se destacam: Ningischzida, filho de Ninurta, representado pelas duas serpentes enroladas no bastão, e Sachan, a deusa-serpente.
           Simultaneamente, talvez como sequência teogônica, a narrativa mítica do herói Gilgamesh, o rei sumério, da cidade-estado de Uruk (hoje em dia Warka, no Iraque), a serpente se relaciona à vida eterna. Essa extraordinária narrativa, recuperada na tradução de doze tábuas de argila, infelizmente incompletas, encontradas por arqueólogos, em Nínive, na antiga Acádia, escrita em linguagem acádia, durante o reinado de Assurbanipal (668-627 a.C.).
A descrição desse épico explica, inicialmente, a natureza de Gilgamesh como sendo mais divino que humano, mas também reconhecido como construtor e guerreiro, simultaneamente, tirano e despótico. Os deuses, atendendo às súplicas do povo, enviaram Enkidu para matar Gilgamesh. A luta titânica não resultou em vencedor e vencido. Ao contrário, os dois tornaram-se amigos e partiram para novas aventuras. Longe de Uruk, enfrentam Huwawa, o guardião divino dos bosques de Cedro. Apesar de faltarem partes das tábuas que contam parte da história, é possível deduzir que Gilgamesh derrota Huwawa. Voltando para Uruk, Ishtar, a deusa do amor e da fertilidade propõe-lhe casamento. Gilgamesh sabendo do triste destino dos homens que se uniram a ela recusa o convite. Ishtar, enciumada e colérica, convence o pai a enviar o touro celestial para matar Gilgamesh. Ele e Enkidu enfrentam e derrotam o monstro. Por ter participado do duelo, Enkidu recebe a ameaça de castigo em sonho, quando os três deuses, Anu, Ea e Shamah, dizem-lhe que irá morrer em breve. Como previsto, adoece e morre. Gilgamesh, desconsolado chora a morte de seu amigo e parte numa perigosa viagem em busca do sábio Ut-Napishtim, único sobrevivente do dilúvio, justo e piedoso no meio da barbárie e da injustiça, que possui o segredo da imortalidade.
Os deuses mandaram Ut-Napishtim construir um barco no meio do deserto e esperar o pior. Durante seis dias e seis noites, aconteceu o dilúvio, tão intenso que até os deuses se assustaram. Gilgamesh sobreviveu ao dilúvio e quando o nível das águas baixou, surgiu a nova Mesopotâmia.
Na busca da imortalidade, Gilgamesh ouve do imortal Ut-Napishtim que a planta da vida eterna está no fundo de um lago, e parte na busca da imortalidade. Como sempre, enfrentando muitos desafios, triunfa. No caminho de volta a Uruk, cansado, descansa na margem do lago e, ao acordar, vê a serpente roubar a planta milagrosa; após engoli-la, rejuvenesce, mudando a pele. Nada mais resta a Gilgamesh a não ser chorar, amargamente, a perda da imortalidade.
Desse modo, é admissível estabelecer relações históricas e míticas entre as batas dos estudantes de medicina, a serpente representando o deus Ningishzida e o mito de Gilgamesh, todas como metamorfoses da luta épica contra a morte.