Zemaria Pinto
Dandara
Dançarina em uma boate de segunda – um puteiro –
em Brasília, Dandara fazia jus ao nome: negra, lábios grossos,
cabelos black power e disposição
guerreira para enfrentar situações adversas. E era belíssima. Altura acima da média, carnes rijas, seios fartos mas sem exageros, bunda em harmonia com o resto. A luz negra da boate escondia as marcas da
varíola que a acometera ainda criança, mas era um detalhe menor que, uma vez revelado, não diminuía o impacto de sua
beleza, ressaltada pela nobreza do porte quando ela desfilava pelo melancólico
salão. Na segunda noite, aproximou-se e perguntou-me
se era só para vê-la que eu ía ao Palace.
Na primeira vez, não; estava fazendo hora, perto do meu hotel. Mas retornei,
sim, porque fiquei fascinado pela sua estranha beleza. Por que estranha? Acha
que a mulher negra é inferior a essas brancas flácidas e sem sal? Não, não é isso. Então, me dá três nomes de
mulheres negras bonitas e gostosas. Um vendaval instalou-se em minha mente. Balbuciei Angela Davis, que eu nem achava
grande coisa. Eu pedi três; faltam duas. Diana Ross. Falta uma. Aquela do Orfeu Negro. Eu vi o filme; cabelo liso, moreninha e gringa. Eu quero negras
brasileiras. Tive que dar o braço à queda. Você não passa de um branco de
merda, preconceituoso. Me paga uma bebida! Durante quatro noites fui aluno
aplicado de Dandara. Aprendi sobre a relação da varíola com os
orixás Omolu e Obaluaê. Mas sua grande referência era Oxum, seu orixá de
cabeça. E aprendi que o sexo poderia ser mais que um ritual que termina
no prazer – no prazer do macho. Aprendi que o sexo pode ser um ritual de
ternura, onde os cheiros e os sabores são fundamentais. Aprendi, afinal, que a
mulher negra tinha uma dignidade para muito além de sua condição social. O
mundo passava, no início dos anos 1970, por uma
transformação que começara já havia algum tempo, mas nem em nossos mais loucos
delírios podíamos imaginar onde chegaria, menos de 50 anos
depois. Na minha lembrança, que saúda a senilidade, a negra Dandara teria
um duplo papel: o de amante e o de mestra. Sobretudo, nas artes amorosas.