Amigos do Fingidor

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Lábios que beijei 58


Zemaria Pinto
Dandara


Dançarina em uma boate de segunda – um puteiro – em Brasília, Dandara fazia jus ao nome: negra, lábios grossos, cabelos black power e disposição guerreira para enfrentar situações adversas. E era belíssima.  Altura acima da média, carnes rijas,  seios fartos mas sem exageros, bunda em harmonia com o resto.  A luz negra da boate escondia as marcas da varíola que a acometera ainda criança, mas era um detalhe menor que, uma vez revelado, não diminuía o impacto de sua beleza, ressaltada pela nobreza do porte quando ela desfilava pelo melancólico salão. Na segunda noite, aproximou-se e perguntou-me se era só para vê-la que eu ía ao Palace. Na primeira vez, não; estava fazendo hora, perto do meu hotel. Mas retornei, sim, porque fiquei fascinado pela sua estranha beleza. Por que estranha? Acha que a mulher negra é inferior a essas brancas flácidas e sem sal? Não,  não é isso. Então, me dá três nomes de mulheres negras bonitas e gostosas. Um vendaval instalou-se em minha mente. Balbuciei Angela Davis, que eu nem achava grande coisa. Eu pedi três; faltam duas. Diana Ross. Falta uma. Aquela do Orfeu Negro. Eu vi o filme; cabelo liso, moreninha e gringa. Eu quero negras brasileiras. Tive que dar o braço à queda. Você não passa de um branco de merda, preconceituoso. Me paga uma bebida! Durante quatro noites fui aluno aplicado de Dandara. Aprendi sobre a relação da varíola com os orixás Omolu e Obaluaê. Mas sua grande referência era Oxum, seu orixá de cabeça. E aprendi que o sexo poderia ser mais que um ritual que termina no prazer – no prazer do macho. Aprendi que o sexo pode ser um ritual de ternura, onde os cheiros e os sabores são fundamentais. Aprendi, afinal, que a mulher negra tinha uma dignidade para muito além de sua condição social. O mundo passava, no início dos anos 1970, por uma transformação que começara já havia algum tempo, mas nem em nossos mais loucos delírios podíamos imaginar onde chegaria, menos de 50 anos depois. Na minha lembrança, que saúda a senilidade, a negra Dandara teria um duplo papel: o de amante e o de mestra. Sobretudo, nas artes amorosas.