Amigos do Fingidor

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Os primeiros registros escritos da medicina



João Bosco Botelho
            
Nas primeiras cidades-estados da Mesopotâmia (Ur, Ourouk, Sumer e Nippur), ocorreram notáveis avanços na medicina.
No início da década de 1920, alguns textos em escrita cuneiforme, da biblioteca de Assurbanipal, foram publicados por Campbell Thompson. Entre os mais importantes, o Tratado de Diagnósticos e Prognósticos Médicos, de 1600 a.C, com quarenta tábuas, descrevia com precisão as práticas médicas.
Os registros entendiam o coração como sede da inteligência e o fígado como o centro da circulação, com informações organizadas em subseções expondo doenças de crianças e mulheres por meio de observação minuciosa e aguçada.
Os conceitos terapêuticos mesopotâmicos baseavam-se na crença de que as mudanças no curso da saúde e da doença se encontravam estritamente unidos e subordinados à vontade dos deuses. Essa compreensão, em si mesma teocêntrica, aliava-se à importância dos movimentos dos corpos celestes, onde os astros sendo deuses poderiam predizer o futuro, em especial, as condições da saúde e da doença.
As doenças e curas se explicavam por meio de complexa relação entre os deuses bons ou gênio bondoso e deuses maus ou demônios. O gênio bom protegia as pessoas dos demônios causadores de doenças, onde cada enfermidade conhecida e temida era associada ao deus mau.
No complexo panteão mesopotâmico se destacava o poderoso deus Marduk, que, acima de qualquer outro, poderia oferecer a saúde ou a doença.
É interessante assinalar que a palavra shêtu significava simultaneamente doença, pecado ou castigo divino. Essa constatação sugere que a ancestral e temida relação entre doença-pecado, até hoje utilizada em alguns processos catequéticos, está presente desde as primeiras linguagens escritas.
 Desse modo, é possível teorizar que o significado pessoal e coletivo da doença, nas primeiras cidades da Mesopotâmia, estivesse contido entre quatro pressupostos de naturezas mágicas: castigo divino, ofensa a determinado deus, intervenção direta dos deuses maus e resultante do abandono do deus bom ou da influência de demônios.
Por essa razão, a intervenção do curador de todos os matizes, sem se saber onde começava a religião e terminava a prática religiosa, se iniciava na confissão do doente. A terapêutica também embutia o objetivo de purificar o indivíduo por meio da catarse induzida pelo remédio de qualquer natureza, em especial as rezas e as oferendas.
A tradução da tábua cuneiforme, com seis por três centímetros de tamanho, lembrando um cartão de visitas, pertencente ao médico Urlugaledina, representa essa teorização: o nome do médico entre duas figuras desenhadas na argila; à esquerda, um deus, e à direita, uma planta medicinal, e o texto: “Ó deus Edinmugi, vizir do deus Gir, que protege os animais quando tem seus filhos, o médico Urlugaledina seu servo”.
Igualmente impressionante é o fato de essa presença mágica não estar dissociada do enorme conhecimento médico historicamente acumulado reforçando a utilidade social e, por isso mesmo, valorizado e reproduzido sem esforço: compressa aquecida e embebida com resina alcalina para tratar as feridas traumáticas, que são, ainda hoje, de comprovada utilidade. Pelas descrições, algumas delas liberavam sabão, que ajudaria a proteger contra as infecções bacterianas. É de tirar o fôlego a clareza da descrição das doenças – tuberculose, amigdalite, gastrite, acidente vascular cerebral, malária e dezenas de outras – no Tratado de Diagnósticos e Prognósticos Médicos, de 1600 a.C.