João Bosco Botelho
Nas primeiras cidades-estados da Mesopotâmia (Ur, Ourouk, Sumer e Nippur),
ocorreram notáveis avanços na medicina.
No início da década de 1920, alguns
textos em escrita cuneiforme, da biblioteca de Assurbanipal, foram publicados
por Campbell Thompson. Entre os mais importantes, o Tratado de Diagnósticos e Prognósticos Médicos, de 1600 a.C, com
quarenta tábuas, descrevia com precisão as práticas médicas.
Os registros entendiam o coração como sede
da inteligência e o fígado como o centro da circulação, com informações organizadas
em subseções expondo doenças de crianças e mulheres por meio de observação
minuciosa e aguçada.
Os conceitos terapêuticos
mesopotâmicos baseavam-se na crença de que as mudanças no curso da saúde e da
doença se encontravam estritamente unidos e subordinados à vontade dos deuses.
Essa compreensão, em si mesma teocêntrica, aliava-se à importância dos
movimentos dos corpos celestes, onde os astros sendo deuses poderiam predizer o
futuro, em especial, as condições da saúde e da doença.
As doenças e curas se explicavam por meio de complexa relação entre os
deuses bons ou gênio bondoso e deuses maus ou demônios. O gênio bom protegia as
pessoas dos demônios causadores de doenças, onde cada enfermidade conhecida e
temida era associada ao deus mau.
No complexo panteão mesopotâmico se destacava o poderoso deus Marduk,
que, acima de qualquer outro, poderia oferecer a saúde ou a doença.
É interessante assinalar que a palavra shêtu significava simultaneamente doença, pecado ou castigo divino.
Essa constatação sugere que a ancestral e temida relação entre doença-pecado,
até hoje utilizada em alguns processos catequéticos, está presente desde as
primeiras linguagens escritas.
Desse modo, é possível teorizar
que o significado pessoal e coletivo da doença, nas primeiras cidades da
Mesopotâmia, estivesse contido entre quatro pressupostos de naturezas mágicas:
castigo divino, ofensa a determinado deus, intervenção direta dos deuses maus e
resultante do abandono do deus bom ou da influência de demônios.
Por essa razão, a intervenção do curador de todos os matizes, sem se
saber onde começava a religião e terminava a prática religiosa, se iniciava na
confissão do doente. A terapêutica também embutia o objetivo de purificar o
indivíduo por meio da catarse induzida pelo remédio de qualquer natureza, em
especial as rezas e as oferendas.
A tradução da tábua cuneiforme, com
seis por três centímetros de tamanho, lembrando um cartão de visitas, pertencente
ao médico Urlugaledina, representa essa teorização: o nome do médico entre duas
figuras desenhadas na argila; à esquerda, um deus, e à direita, uma planta
medicinal, e o texto: “Ó deus Edinmugi, vizir do deus Gir, que protege os
animais quando tem seus filhos, o médico Urlugaledina seu servo”.
Igualmente impressionante é o fato de
essa presença mágica não estar dissociada do enorme conhecimento médico historicamente
acumulado reforçando a utilidade social e, por isso mesmo, valorizado e
reproduzido sem esforço: compressa aquecida e embebida com resina alcalina para
tratar as feridas traumáticas, que são, ainda hoje, de comprovada utilidade.
Pelas descrições, algumas delas liberavam sabão, que ajudaria a proteger contra
as infecções bacterianas. É de tirar o fôlego a clareza da descrição das
doenças – tuberculose, amigdalite, gastrite, acidente vascular cerebral,
malária e dezenas de outras – no Tratado
de Diagnósticos e Prognósticos Médicos, de 1600 a.C.