Amigos do Fingidor

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos 8/12

Zemaria Pinto


Título: o Eu despersonalizado

Neste ponto, faz-se necessário entender o título do livro. Muito já se escreveu sobre essa palavra de duas letras, que tem um significado tão intenso. Se lemos o título do livro de Augusto dos Anjos tendo em mente que ele era um estudioso do budismo, e que isso se refletia na sua obra, esvaziamos a palavra “eu” de qualquer sentido, pois o “eu”, finito em si mesmo, é a única razão da dor individual. Siddharta Gautama, o primeiro Buda, distinguia duas formas de se viver:  

A primeira – a maneira aleatória, não-reflexiva, na qual o sujeito é puxado e empurrado pelos impulsos e circunstâncias como um galho numa enxurrada de tempestade – ele chamou de “perambulação”. A segunda – a trilha do viver com intenção – ele chamou de o Caminho. (SMITH; NOVAK, 2008, p. 47) 

Augusto dos Anjos escolhe para sua poesia escrever com intenção, definindo-lhe um caminho inédito. A começar pelo título do livro, que, numa primeira e apressada leitura, seria a manifestação de um ego inflado, é, ao contrário, a manifestação de um eu que se desmaterializa, porque não fala por si mesmo, mas por uma ideia preexistente. A raiz desse pensamento está nas Quatro Verdades, preconizadas na “metafísica de Abidarma”, cujas três primeiras verdades, simplificadas ao extremo, podem assim ser expressas: a vida (a trajetória do eu) é traduzida em sofrimento; e a causa desse sofrimento são os desejos pessoais (do eu) não realizados; é preciso despir-se de qualquer ambição pessoal (anulando o eu) para encontrar a libertação (SMITH; NOVAK, 2008, p. 40-45).


“Multidão, solidão”
 

Em “Os doentes”, o “cientificismo” de Augusto dos Anjos é apenas uma leitura possível, mas óbvia e desgastada. “Os doentes” se enquadra naquela tradição fundada por Baudelaire, que promove o intercâmbio entre as excludentes representações mentais de multitude e solitude:  

Multidão, solidão: termos iguais e conversíveis para o poeta diligente e fecundo. [...] O poeta goza do incomparável privilégio de ser, à sua vontade, ele mesmo e outrem. Como as almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando lhe apraz, na personalidade de cada um. Para ele, e só para ele, tudo está vago; e, se alguns lugares parecem vedados ao poeta, é que a seus olhos tais lugares não valem a pena de uma visita. (BAUDELAIRE, 1995b, p. 289)

    É usando a máscara que o poeta deixa de ser um solitário na multidão. E como “tudo está vago” as possibilidades de máscaras se multiplicam ao infinito. Walter Benjamin, refletindo sobre Baudelaire, afirma que “a multidão metropolitana despertava medo, repugnância e horror naqueles que a viam pela primeira vez” (1994, p. 124). Mas Baudelaire rompe com a atitude romântica de que a cidade é intrinsecamente não poética: a cidade é sim material poético – o mais poético da modernidade. Depende de como se a olhe (HYDE, 1999, p. 275-277). Augusto dos Anjos vai além do que pode aprender com Baudelaire, desenvolvendo processos expressionistas, que ele certamente não conhecia, deformando a realidade, plasmando-a com as sensações que ela desperta, criando imagens novas, entre o delirante e o grotesco.