Zemaria Pinto
Título: o Eu despersonalizado
Neste ponto, faz-se necessário entender
o título do livro. Muito já se escreveu sobre essa palavra de duas letras, que
tem um significado tão intenso. Se lemos o título do livro de Augusto dos Anjos
tendo em mente que ele era um estudioso do budismo, e que isso se refletia na
sua obra, esvaziamos a palavra “eu” de qualquer sentido, pois o “eu”, finito em
si mesmo, é a única razão da dor individual. Siddharta Gautama, o primeiro
Buda, distinguia duas formas de se viver:
A primeira – a
maneira aleatória, não-reflexiva, na qual o sujeito é puxado e empurrado pelos
impulsos e circunstâncias como um galho numa enxurrada de tempestade – ele
chamou de “perambulação”. A segunda – a trilha do viver com intenção – ele
chamou de o Caminho. (SMITH; NOVAK, 2008, p. 47)
Augusto dos Anjos escolhe para sua
poesia escrever com intenção, definindo-lhe um caminho inédito. A começar pelo
título do livro, que, numa primeira e apressada leitura, seria a manifestação
de um ego inflado, é, ao contrário, a manifestação de um eu que se
desmaterializa, porque não fala por si mesmo, mas por uma ideia preexistente. A
raiz desse pensamento está nas Quatro Verdades, preconizadas na “metafísica de
Abidarma”, cujas três primeiras verdades, simplificadas ao extremo, podem assim
ser expressas: a vida (a trajetória do eu) é traduzida em sofrimento; e a causa
desse sofrimento são os desejos pessoais (do eu) não realizados; é preciso
despir-se de qualquer ambição pessoal (anulando o eu) para encontrar a
libertação (SMITH; NOVAK, 2008, p. 40-45).
“Multidão, solidão”
Em “Os doentes”, o “cientificismo” de
Augusto dos Anjos é apenas uma leitura possível, mas óbvia e desgastada. “Os
doentes” se enquadra naquela tradição fundada por Baudelaire, que promove o
intercâmbio entre as excludentes representações mentais de multitude e solitude:
Multidão,
solidão: termos iguais e conversíveis para o poeta diligente e fecundo. [...] O
poeta goza do incomparável privilégio de ser, à sua vontade, ele mesmo e
outrem. Como as almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando lhe
apraz, na personalidade de cada um. Para ele, e só para ele, tudo está vago; e,
se alguns lugares parecem vedados ao poeta, é que a seus olhos tais lugares não
valem a pena de uma visita. (BAUDELAIRE, 1995b, p. 289)