Amigos do Fingidor

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos 9/12

Zemaria Pinto
Epílogo, com final feliz



Sem nunca haver sido publicado antes, “Os doentes”, assim como o “Monólogo de uma sombra”, provavelmente, foi escrito às vésperas da edição do Eu. Os dois poemas se complementam: no “Monólogo”, a máscara lírica já tem o domínio da sua escatologia; em “Os doentes” ela ainda busca entendê-la, levando o seu desespero mascarado ao paroxismo do grotesco. A conclusão do poema, com a afirmação do nascimento de uma nova espécie humana, é o desfecho, o final feliz, da saga vivida, de modo épico, pela máscara. Se o “Monólogo de uma sombra” funciona como prólogo, “Os doentes” poderia ter função de epílogo, com os poemas intermediários funcionando ora como episódios, ora como reflexões.


“As cismas do destino”: centro irradiador

“As cismas do destino” traz de forma concentrada o tema e os motivos da poesia de Augusto dos Anjos, que, em 1908, ainda estava em fase de estruturação – enquanto os poemas citados anteriormente, de 1912, tema e motivos já estavam consolidados. Antes, afirmáramos que o “Monólogo” funciona como um prólogo do Eu. Neste ponto, precisamos rever essa afirmativa, pois “Monólogo de uma sombra” é o coroamento de “As cismas do destino”, que o antecipa – assim como a outros poemas –, funcionando como uma súmula do pensamento e da poesia expressionista de Augusto dos Anjos. A propósito, da primeira à última quadra – do clima noir à alegoria da destruição da natureza, sem esquecer o superlativo discurso do Destino –, Augusto dos Anjos mantém a corda expressionista tensionada ao extremo, tanto do ponto de vista formal, com suas imagens construídas como cenas, distribuídas de modo caótico, a partir de vocábulos os mais inusitados, como do conteúdo: áspero, contundente, antinaturalista.

Não temos como afirmá-lo, porque não há nenhuma documentação a respeito, mas parece-nos que é por essa época, aos 24 anos, que Augusto dos Anjos se deixa “fisgar”, definitivamente, pela filosofia de Schopenhauer. Já não contava mais a dor individual ainda expressa, sob o disfarce da máscara lírica, em poemas como “Queixas noturnas”, “Poema negro”, “Gemidos de arte” e “Tristezas de um quarto minguante”, mas uma dor coletiva, trágica: 

Observe-se aqui algo de suma significação para toda a nossa visão geral de mundo: o objetivo dessa suprema realização poética não é outro senão a exposição do lado terrível da vida, a saber, o inominado sofrimento, a miséria humana, o triunfo da maldade, o império cínico do acaso, a queda inevitável do justo e do inocente. E em tudo isso se encontra uma indicação significativa da índole do mundo e da existência. É o conflito da Vontade consigo mesma, que aqui, desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetividade, entra em cena de maneira aterrorizante.  (SCHOPENHAUER, 2005, p. 333)


Absorvida a lição de que Ideia é intuição, o poeta lírico se transporta aos palcos da tragédia, para criar personagens como esse Destino ou, mais adiante, a Sombra. Mas a sua grande personagem já estava criada: era a máscara lírica, com a qual ele ousava escrever não apenas a sua história individual, mas a história da Humanidade: 

Reproduzem-se na poesia lírica do genuíno poeta o íntimo da humanidade inteira e tudo o que milhões de homens passados, presentes e futuros sentiram e sentirão nas mesmas situações, visto que retornam continuamente, e ali encontram a sua expressão apropriada. [...] O poeta é o espelho da humanidade, e traz à consciência dela o que ela sente e pratica. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 328-329)


Por outro lado, o pensamento de Schopenhauer sobre a imanência do sofrimento no ser humano, enquanto os organismos simples pouco ou nada conhecem dele (SCHOPENHAUER, 2005, p. 399-400), vem ao encontro das ideias de Haeckel e Spencer sobre o monismo e a evolução, que Augusto dos Anjos conhecera ainda adolescente.

Ora, não sendo senão um homem comum, mas ciente de seu potencial como artista, Augusto dos Anjos desenvolve a ideia de “dor estética”, que seria exposta no “Monólogo”, como um subterfúgio a sua incapacidade de criar com expressividade a partir de seu próprio eu. Até aqui, a máscara atuara intuitivamente; agora, ela estava embasada filosoficamente, por uma metafísica ética e por uma metafísica estética, cujo estuário místico seria o budismo.

“As cismas do destino”, pelo que tem de original e de singular, ocupa o centro irradiador das ideias veiculadas no Eu, e na poesia feita depois do livro publicado.