Zemaria Pinto
Epílogo, com final
feliz
Sem nunca haver sido publicado antes,
“Os doentes”, assim como o “Monólogo de uma sombra”, provavelmente, foi escrito
às vésperas da edição do Eu. Os dois
poemas se complementam: no “Monólogo”, a máscara lírica já tem o domínio da sua
escatologia; em “Os doentes” ela ainda busca entendê-la, levando o seu
desespero mascarado ao paroxismo do grotesco. A conclusão do poema, com a
afirmação do nascimento de uma nova espécie humana, é o desfecho, o final
feliz, da saga vivida, de modo épico, pela máscara. Se o “Monólogo de uma
sombra” funciona como prólogo, “Os doentes” poderia ter função de epílogo, com
os poemas intermediários funcionando ora como episódios, ora como reflexões.
“As cismas do
destino”: centro irradiador
“As cismas do destino” traz de forma
concentrada o tema e os motivos da poesia de Augusto dos Anjos, que, em 1908,
ainda estava em fase de estruturação – enquanto os poemas citados anteriormente,
de 1912, tema e motivos já estavam consolidados. Antes, afirmáramos que o
“Monólogo” funciona como um prólogo do Eu.
Neste ponto, precisamos rever essa afirmativa, pois “Monólogo de uma sombra” é
o coroamento de “As cismas do destino”, que o antecipa – assim como a outros
poemas –, funcionando como uma súmula do pensamento e da poesia expressionista
de Augusto dos Anjos. A propósito, da primeira à última quadra – do clima noir à alegoria da destruição da
natureza, sem esquecer o superlativo discurso do Destino –, Augusto dos Anjos
mantém a corda expressionista tensionada ao extremo, tanto do ponto de vista
formal, com suas imagens construídas como cenas, distribuídas de modo caótico,
a partir de vocábulos os mais inusitados, como do conteúdo: áspero,
contundente, antinaturalista.
Não temos como afirmá-lo, porque não há
nenhuma documentação a respeito, mas parece-nos que é por essa época, aos 24
anos, que Augusto dos Anjos se deixa “fisgar”, definitivamente, pela filosofia
de Schopenhauer. Já não contava mais a dor individual ainda expressa, sob o
disfarce da máscara lírica, em poemas como “Queixas noturnas”, “Poema negro”,
“Gemidos de arte” e “Tristezas de um quarto minguante”, mas uma dor coletiva,
trágica:
Observe-se aqui
algo de suma significação para toda a nossa visão geral de mundo: o objetivo
dessa suprema realização poética não é outro senão a exposição do lado terrível
da vida, a saber, o inominado sofrimento, a miséria humana, o triunfo da
maldade, o império cínico do acaso, a queda inevitável do justo e do inocente.
E em tudo isso se encontra uma indicação significativa da índole do mundo e da
existência. É o conflito da Vontade consigo mesma, que aqui, desdobrado
plenamente no grau mais elevado de sua objetividade, entra em cena de maneira
aterrorizante. (SCHOPENHAUER, 2005, p.
333)
Absorvida a lição de que Ideia é
intuição, o poeta lírico se transporta aos palcos da tragédia, para criar
personagens como esse Destino ou, mais adiante, a Sombra. Mas a sua grande
personagem já estava criada: era a máscara lírica, com a qual ele ousava
escrever não apenas a sua história individual, mas a história da Humanidade:
Reproduzem-se na
poesia lírica do genuíno poeta o íntimo da humanidade inteira e tudo o que
milhões de homens passados, presentes e futuros sentiram e sentirão nas mesmas
situações, visto que retornam continuamente, e ali encontram a sua expressão
apropriada. [...] O poeta é o espelho da humanidade, e traz à consciência dela
o que ela sente e pratica. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 328-329)
Por outro lado, o pensamento de
Schopenhauer sobre a imanência do sofrimento no ser humano, enquanto os
organismos simples pouco ou nada conhecem dele (SCHOPENHAUER, 2005, p. 399-400),
vem ao encontro das ideias de Haeckel e Spencer sobre o monismo e a evolução,
que Augusto dos Anjos conhecera ainda adolescente.
Ora, não sendo senão um homem comum, mas
ciente de seu potencial como artista, Augusto dos Anjos desenvolve a ideia de
“dor estética”, que seria exposta no “Monólogo”, como um subterfúgio a sua
incapacidade de criar com expressividade a partir de seu próprio eu. Até aqui,
a máscara atuara intuitivamente; agora, ela estava embasada filosoficamente,
por uma metafísica ética e por uma metafísica estética, cujo estuário místico
seria o budismo.
“As cismas do destino”, pelo que tem de
original e de singular, ocupa o centro irradiador das ideias veiculadas no Eu, e na poesia feita depois do livro
publicado.