Zemaria Pinto
Sob a máscara
Mais de 70% dos poemas publicados na
edição original do Eu são
constituídos de sonetos. Dos poemas posteriores ao livro, publicados sob a
chancela Outras Poesias, esse número
se eleva para quase 90%. Juntando os dois números, temos, na obra consagrada de
Augusto dos Anjos, um total de 80% sob a forma soneto. Estes números nos falam
com eloquência da importância que a forma representava para o poeta. A
característica mais marcante do soneto de Augusto dos Anjos é a reflexão a que
ele se entrega, sempre com aquela ideia schopenhaueriana de que o poeta é o
espelho da humanidade. Mas, tão antiga quanto a poesia é a ideia de que o poema
é o espelho do poeta. Assim, corroborando tudo o que falamos a respeito da
máscara lírica, há um soneto do Eu –
“A um mascarado” – em que a máscara se coloca diante do espelho e vê refletido
não o seu rosto – talvez informe, talvez disforme –, mas o próprio rosto do
poeta:
Rasga esta máscara ótima de seda
E atira-a à arca ancestral dos
palimpsestos...
É noite, e, à noite, a escândalos
e incestos
É natural que o instinto humano
aceda!
Sem que te arranquem da garganta
queda
A interjeição danada dos
protestos,
Hás de engolir, igual a um porco,
os restos
Duma comida horrivelmente azeda!
A sucessão de hebdômadas medonhas
Reduzirá os mundos que tu sonhas
Ao microcosmos do ovo
primitivo...
E tu mesmo, após a árdua e atra
refrega,
Terás somente uma vontade cega
E uma tendência obscura de ser vivo!
(p. 258)
O demonstrativo “esta” no primeiro verso
aproxima em definitivo a figura da voz emissora, mesclando-a com a figura do
interlocutor, tornando-os uma só pessoa.
A máscara ordena ao poeta que atire sua máscara no depósito de
palimpsestos, escritos novos que se sobrepõem aos antigos. A máscara do poeta
irá se confundir com os poemas que ele guarda. E como é bem do seu feitio,
convida-o a escândalos e incestos, cedendo ao seu vil instinto humano. Sem
emitir protestos, o poeta engolirá a ofensa e verá reduzir-se em caos larvar o
seu sonho de uma humanidade transformada, pesadelo recorrente da máscara
lírica. Não restará ao poeta, no meio da podridão, senão persistir na vontade
de continuar vivo.
Assunto recorrente, a dor mereceu de
Augusto dos Anjos, depois da publicação do Eu,
um poema específico, apropriadamente intitulado “Hino à dor”[i]
(p. 326), uma justificativa schopenhaueriana à “dor estética” formulada no
“Monólogo de uma sombra”.
Para Schopenhauer, “em essência, toda
vida é sofrimento” (2005, p. 400). O filósofo alemão ecoa o Eclesiastes:
“porque em muita sabedoria há muito desgosto; aumentando a ciência, aumenta o
sofrimento” (1:18, p. 788). Para cantar o paradoxo da alegria da dor, o poeta
põe a máscara lírica expressionista de lado e faz um exercício formal
parnasiano, onde não falta mesmo o toque erótico: “Sou teu amante! Ardo em teu
corpo abstrato.” De resto, a Dor é prenhe de positividades: saúde, riqueza,
tesouro, alegria, ancoradouro, sol, ouro etc. – até a ironia final: a posse, física,
“de tuas claridades absolutas!”. O domínio da dor, a dor estética, a dor
arquitetada com finalidade artística. Para justificar que o homem de gênio é o
que mais sofre e que o conhecimento é fonte de dor, o poeta constrói a sua
forma de dor particular, iluminada.
[i] Em 1905, ele publicara um poema
de extração simbolista com o título “A dor”, relacionado entre os poemas
esquecidos, que não guarda nenhuma proximidade com este “Hino à dor”.