Amigos do Fingidor

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos 10/12

Zemaria Pinto
Sob a máscara



Mais de 70% dos poemas publicados na edição original do Eu são constituídos de sonetos. Dos poemas posteriores ao livro, publicados sob a chancela Outras Poesias, esse número se eleva para quase 90%. Juntando os dois números, temos, na obra consagrada de Augusto dos Anjos, um total de 80% sob a forma soneto. Estes números nos falam com eloquência da importância que a forma representava para o poeta. A característica mais marcante do soneto de Augusto dos Anjos é a reflexão a que ele se entrega, sempre com aquela ideia schopenhaueriana de que o poeta é o espelho da humanidade. Mas, tão antiga quanto a poesia é a ideia de que o poema é o espelho do poeta. Assim, corroborando tudo o que falamos a respeito da máscara lírica, há um soneto do Eu – “A um mascarado” – em que a máscara se coloca diante do espelho e vê refletido não o seu rosto – talvez informe, talvez disforme –, mas o próprio rosto do poeta: 

Rasga esta máscara ótima de seda
E atira-a à arca ancestral dos palimpsestos...
É noite, e, à noite, a escândalos e incestos
É natural que o instinto humano aceda! 

Sem que te arranquem da garganta queda
A interjeição danada dos protestos,
Hás de engolir, igual a um porco, os restos
Duma comida horrivelmente azeda! 

A sucessão de hebdômadas medonhas
Reduzirá os mundos que tu sonhas
Ao microcosmos do ovo primitivo... 

E tu mesmo, após a árdua e atra refrega,
Terás somente uma vontade cega
E uma tendência obscura de ser vivo!
(p. 258) 

O demonstrativo “esta” no primeiro verso aproxima em definitivo a figura da voz emissora, mesclando-a com a figura do interlocutor, tornando-os uma só pessoa.  A máscara ordena ao poeta que atire sua máscara no depósito de palimpsestos, escritos novos que se sobrepõem aos antigos. A máscara do poeta irá se confundir com os poemas que ele guarda. E como é bem do seu feitio, convida-o a escândalos e incestos, cedendo ao seu vil instinto humano. Sem emitir protestos, o poeta engolirá a ofensa e verá reduzir-se em caos larvar o seu sonho de uma humanidade transformada, pesadelo recorrente da máscara lírica. Não restará ao poeta, no meio da podridão, senão persistir na vontade de continuar vivo.

Assunto recorrente, a dor mereceu de Augusto dos Anjos, depois da publicação do Eu, um poema específico, apropriadamente intitulado “Hino à dor”[i] (p. 326), uma justificativa schopenhaueriana à “dor estética” formulada no “Monólogo de uma sombra”. 

Para Schopenhauer, “em essência, toda vida é sofrimento” (2005, p. 400). O filósofo alemão ecoa o Eclesiastes: “porque em muita sabedoria há muito desgosto; aumentando a ciência, aumenta o sofrimento” (1:18, p. 788). Para cantar o paradoxo da alegria da dor, o poeta põe a máscara lírica expressionista de lado e faz um exercício formal parnasiano, onde não falta mesmo o toque erótico: “Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.” De resto, a Dor é prenhe de positividades: saúde, riqueza, tesouro, alegria, ancoradouro, sol, ouro etc. – até a ironia final: a posse, física, “de tuas claridades absolutas!”. O domínio da dor, a dor estética, a dor arquitetada com finalidade artística. Para justificar que o homem de gênio é o que mais sofre e que o conhecimento é fonte de dor, o poeta constrói a sua forma de dor particular, iluminada.



[i] Em 1905, ele publicara um poema de extração simbolista com o título “A dor”, relacionado entre os poemas esquecidos, que não guarda nenhuma proximidade com este “Hino à dor”.