Zemaria Pinto
Resumindo sem concluir
Fortemente influenciada pela filosofia
de Schopenhauer e pelo pensamento budista; percutindo as vibrações inovadoras
da poesia de Baudelaire; tomada por uma sede de conhecimento que não obtinha
respostas satisfatórias das ciências; obstinada pelo mundo microscópico que só
àquela época começava a ser explorado; reflexo, enfim, de um país em
transformação, em um mundo em transformação, a poesia de Augusto dos Anjos
encontra o seu Zeitgeist, o espírito
dionisíaco de seu tempo, em uma expressão inédita na literatura brasileira, que
desnorteou, por muito tempo, sua recepção crítica.
Não entramos no mérito da psique do
poeta. Antes, partimos do princípio, corroborado por poucos, de que ele era um
cidadão comum, levando uma vida dentro dos padrões de normalidade, constituindo
família, inclusive. Bacharel em Direito, optou por ser professor, o que talvez
lhe desse mais tranquilidade para levar sua obra adiante. Poeta desde a
adolescência, seus poemas mais antigos, dos dezesseis anos, já trazem a marca
de um eu lírico melancólico, marcado pela solidão e pela reflexão sobre o
estar-no-mundo.
A partir de um dado momento, que
situamos em meados de 1906, essa melancolia se exacerba e a expressão – marcada
por um parnasianismo à Raimundo Correa, e um simbolismo apoiado especialmente
em Cruz e Sousa, conforme o demonstra fartamente Magalhães Júnior (1978, p.
49-79) –, a expressão que vinha se tornando cada vez mais áspera, encontra
finalmente o seu tom – um tom que não combinava com o pacato professor.
Não era mais o eu lírico que se
expressava, mas um desdobramento deste: uma personagem sofrida, misantropa,
misógina, que parecia ter uma só finalidade na vida – sofrer. Com a melancolia
em crescimento exponencial, aquela personagem – a quem chamamos de máscara
lírica – amadurece não apenas a linguagem, mas também as reflexões.
O problema que se colocava era com
relação às representações miméticas da realidade, da qual os simbolistas
procuravam fugir, mas somente os expressionistas lograram conseguir de forma
integral, recriando a realidade, distorcendo-a até deixá-la irreconhecível.
Para atingir o nível de linguagem pretendido, subvertendo as noções
padronizadas de beleza, o poeta desenvolve o conceito que ele chamaria de “dor
estética”, que consiste essencialmente em manifestar a dor com arte – sem
precisar senti-la. Essa noção de dor é de Schopenhauer, mas também é budista;
em ambos, viver é sofrer; então, se o poeta não sofre, ou não sofre tanto, é
preciso inventar a dor, por meio de uma personagem – a máscara lírica.
“Queixas noturnas” é o poema inaugural
dessa nova fase, que daria a maioria dos 58 poemas da edição inicial do Eu. Dois anos mais tarde, Augusto dos
Anjos publica o poema seminal “As cismas do destino”, que forneceria motivos a
muitos outros poemas, unindo forma e conteúdo num mesmo ideário expressionista.
Um desses motivos recorrentes é a utilização de um universo de microrganismos,
sempre em contraponto com o universo humano. Aí reside a base do
“cientificismo” de Augusto dos Anjos: o antagonismo entre as ideias de evolução
e criação. De maneira singela, ele resolve isso, entregando à criação as formas
simples de vida (moneras e similares) e creditando todo o resto à evolução.
Isso explicaria porque a humanidade chegou a um estágio de total degradação,
parasitária, tomada pelo vício e pela corrupção dos costumes.
No “Monólogo de uma sombra”, poema que
abre o Eu, após zombar das ciências e
bradar contra a permissividade, uma espécie de deus-verme vaticina que somente
a Arte pode redimir a Humanidade. Em “Os doentes”, uma alegoria da degradação,
a ideia de que a Arte é a única saída para a Humanidade retorna, e o poema
termina de forma otimista, “o começo magnífico de um sonho”, “a gestação
daquele grande feto, / que vinha substituir a Espécie Humana!” (p. 249). Para
Schopenhauer, a arte é a única razão para que o sofrimento seja suportável,
ainda que seja representação do sofrimento:
A fruição do
belo, o consolo proporcionado pela arte, o entusiasmo do artista que faz
esquecer a penúria da vida, essa vantagem do gênio em face de todos os outros
homens, única que o compensa pelo sofrimento que cresce na proporção de sua
clarividência e pela erma solidão em meio a uma multidão tão heterogênea – tudo
isso se deve ao fato de que o Em-si da vida, a Vontade, a existência mesma, é
um sofrimento contínuo, e em parte lamentável, em parte terrível; o qual,
todavia, se intuído pura e exclusivamente como representação, ou repetido pela
arte, livre de tormentos, apresenta-nos um teatro pleno de significado. Esse
lado do mundo conhecido de maneira pura, bem como a repetição dele em alguma
arte, é o elemento do artista. (2005, p. 349-350)
Mas a arte é apenas um consolo, sem
poder para fazer cessar o sofrimento imanente ao ser humano. Todavia, o artista
faz a sua parte, transformando sua arte em arma de convencimento, buscando
colocar a Ideia no proscênio desse “teatro pleno de significado”. Ainda que
tudo seja provisório, impermanente.