Zemaria
Pinto
É
trivial dizer que o teatro brasileiro divide-se em duas fases: antes e depois
de Nelson Rodrigues. Obras-primas como Álbum
de família, Bonitinha, mas ordinária
ou Toda nudez será castigada
nasceram, entretanto, sob o signo da polêmica, quando não do escândalo. Nelson
não fazia concessões, colocando sobre o palco todos os vícios e pecados da
sonsa classe média brasileira dos anos 40 aos 60. Mas a elegância trágica de
Nelson Rodrigues foi aos poucos sendo absorvida pela massa e ele virou anjo –
pornográfico, mas anjo.
Quando,
ainda na década de 60, aquela mesma classe média conhece Plínio Marcos, fica
conhecendo também um mundo, melhor seria dizer um submundo, muito diferente do
seu, habitado por prostitutas, gigolôs, parasitas sociais, marginais de todos
os matizes. Um mundo com o qual jamais sonhara e que, no entanto, estava bem
ali, ao seu lado. O hiper-realismo de Plínio Marcos serviu de atenuante para o
velho Nelson Rodrigues, que, aos poucos, foi se tornando um clássico.
Esta
Cátia Bolerão, criação exemplar de Álvaro Braga, datada de 1983, é aparentada a
uma certa Neusa Sueli, de Navalha na
carne, ou a Dilma, de O abajur lilás,
peças fundamentais de Plínio Marcos. Não veja o leitor nesta comparação nenhum
demérito ao autor amazonense. Muito pelo contrário, Álvaro Braga constrói sua
personagem com mestria e dignidade. Grávida, já em idade avançada para a
“viração”, Cátia vai à luta e gosta do que faz. Aqui caberiam teses a
mancheias, mas não é isso que o texto pede; mas, se o espectador/leitor for
chegado a um papo-cabeça, certamente saberá montar o complexo arcabouço teórico
que explicará Cátia Bolerão, uma excluída urbana.
Se,
entretanto, o leitor se contenta em analisar a obra de arte independente do seu
óbvio contexto sociológico, observe o personagem Nonô, mudo, preso a uma
cadeira de rodas: sua função em cena é dar mais humanidade a Cátia, pois,
enquanto a criança não chega, ele, Nonô, é toda a sua família. A construção de
Joãozinho também é exemplar: a aparente ingenuidade do início vai evoluindo
gradativamente até a explosão final.
A
tragédia que se desenrola em A última
dança de Cátia Bolerão é mostrada sem nenhum sentimentalismo, uma certa
dose de ironia, e até algum humor. Uma história banal, passada em um mundo
estranho, um mundo que está bem aqui, ao nosso lado.
Obs: orelha do livro A última dança de Cátia Bolerão, de Álvaro Braga (Manaus: Valer, 2003).