Amigos do Fingidor

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A última dança de Cátia Bolerão


Zemaria Pinto
 

É trivial dizer que o teatro brasileiro divide-se em duas fases: antes e depois de Nelson Rodrigues. Obras-primas como Álbum de família, Bonitinha, mas ordinária ou Toda nudez será castigada nasceram, entretanto, sob o signo da polêmica, quando não do escândalo. Nelson não fazia concessões, colocando sobre o palco todos os vícios e pecados da sonsa classe média brasileira dos anos 40 aos 60. Mas a elegância trágica de Nelson Rodrigues foi aos poucos sendo absorvida pela massa e ele virou anjo – pornográfico, mas anjo.

Quando, ainda na década de 60, aquela mesma classe média conhece Plínio Marcos, fica conhecendo também um mundo, melhor seria dizer um submundo, muito diferente do seu, habitado por prostitutas, gigolôs, parasitas sociais, marginais de todos os matizes. Um mundo com o qual jamais sonhara e que, no entanto, estava bem ali, ao seu lado. O hiper-realismo de Plínio Marcos serviu de atenuante para o velho Nelson Rodrigues, que, aos poucos, foi se tornando um clássico.

Esta Cátia Bolerão, criação exemplar de Álvaro Braga, datada de 1983, é aparentada a uma certa Neusa Sueli, de Navalha na carne, ou a Dilma, de O abajur lilás, peças fundamentais de Plínio Marcos. Não veja o leitor nesta comparação nenhum demérito ao autor amazonense. Muito pelo contrário, Álvaro Braga constrói sua personagem com mestria e dignidade. Grávida, já em idade avançada para a “viração”, Cátia vai à luta e gosta do que faz. Aqui caberiam teses a mancheias, mas não é isso que o texto pede; mas, se o espectador/leitor for chegado a um papo-cabeça, certamente saberá montar o complexo arcabouço teórico que explicará Cátia Bolerão, uma excluída urbana.

Se, entretanto, o leitor se contenta em analisar a obra de arte independente do seu óbvio contexto sociológico, observe o personagem Nonô, mudo, preso a uma cadeira de rodas: sua função em cena é dar mais humanidade a Cátia, pois, enquanto a criança não chega, ele, Nonô, é toda a sua família. A construção de Joãozinho também é exemplar: a aparente ingenuidade do início vai evoluindo gradativamente até a explosão final.

A tragédia que se desenrola em A última dança de Cátia Bolerão é mostrada sem nenhum sentimentalismo, uma certa dose de ironia, e até algum humor. Uma história banal, passada em um mundo estranho, um mundo que está bem aqui, ao nosso lado.
Obs: orelha do livro A última dança de Cátia Bolerão, de Álvaro Braga (Manaus: Valer, 2003).