Amigos do Fingidor

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O sonho


Inácio Oliveira


O que eu vou contar é coisa que nem a mais prodigiosa das imaginações humanas poderia conceber, o que por si só já prova a veracidade desta história. Cheguei a Manaus no dia quinze de julho de 2010, como muitos que vieram para esta cidade eu também viera para trabalhar no Distrito Industrial. Havia me formado em engenharia da produção dois anos antes em São Paulo, mas não conseguia emprego. Em São Paulo o mercado é por demais competitivo e a crise financeira dificultava as contratações. Agora que a crise arrefecera eu tentava a sorte em Manaus, aqui faltavam engenheiros, eu podia conseguir um bom emprego, ganhar dinheiro e construir uma carreira. No início muitas coisas me intrigaram nesta cidade: suas ruas labirínticas e seus igarapés soterrados, sua gente e sua miséria em contraste com indústria ininterrupta, sua arquitetura irregular e a nostalgia de um passado glorioso do qual restaram apenas vestígios, a ideia de uma grande cidade incrustada na floresta me parecia fascinante, mesmo assim eu ainda não tivera tempo de conhecê-la melhor, o que eu sabia fazia parte do trajeto do aeroporto até o hotel, mas tudo começou na primeira noite em que estive aqui. Esta história inicia-se com um sonho.

Estou sozinho entre várias ruas estreitas que se bifurcam, algumas parecem feitas de pedra. Prédios antigos estão erguidos por todos os lados, alguns em ruínas. Ninguém passa pelas ruas, nem parece haver alguém morando nos prédios, ou então todos dormem, o silêncio é completo, é possível ouvir o som dos meus próprios passos pisando nas pedras. Curioso que todas as ruas e prédios estão em preto e branco como num filme antigo, até as lâmpadas nos portes são brancas contra o fundo escuro da noite, no entanto tudo parece nítido e absurdamente real, os prédios são identificáveis com seus detalhes em art nouveau, as placas podem ser lidas facilmente: vendem-se eletrodomésticos, eletroeletrônicos, ar condicionados, DVD, TV de LED, promoção, 12 vezes sem juros no cartão de crédito. Apesar de nunca ter estado em lugar semelhante tenho a certeza que isto é Manaus. Caminho lentamente pelas ruas, não há um único movimento, nenhum barulho, até que surge uma mulher a poucos metros de mim, como estamos sós na rua ela parece muito distante, mas eu posso perceber que ela está descalça e usa um vestido vermelho pouco acima do joelho, levemente decotado deixando ver o início dos seus seios. Esta mulher com seu vestido vermelho é a única coisa colorida na paisagem monocromática, do seu vestido parece emanar uma ínfima luz que ilumina ao seu redor como a última centelha de uma fogueira. Ela possui uma beleza incomum, sua pele é de um moreno indefinível e seus olhos são negros, mais negros que noite que nos rodeia, ela me estende a mão e vai dizer alguma coisa, neste instante eu acordo.

Geralmente nunca lembro direito dos sonhos depois que acordo, mas este me deixa a estranha sensação de ter vivido uma experiência real. Chego a me aborrecer por ter acordado antes daquela mulher dizer alguma coisa. O que ela me diria? Este sonho me dá uma leve satisfação em consolo ao incomodo de se estar sozinho numa cidade estranha e distante, longe de tudo, neste clima abafado e insuportavelmente quente; este sonho me permite pensar que Manaus talvez possa ser a cidade de grandes aventuras das quais precisa minha vida. Grandes expectativas tomam forma no meu pensamento, no fim tudo se condensa numa mulher descalça usando um vestido vermelho.

Travei contato com uma empresa japonesa e há uma grande chance deles me contratarem. Mais um dia em Manaus e eu posso perceber que a cidade não é tão exótica quanto eu imaginara. É noite e eu não tenho para onde ir, me resta apenas conhecer algum restaurante por perto e voltar para o hotel. Tento dormir e não consigo, aqui tenho sempre a sensação de estar submerso. Penso no sonho que tive noite passada, na verdade pensei neste sonho várias vezes durante o dia, ao dormir sonho com ela novamente.

Estamos no mesmo lugar da última vez. Ela caminha na minha frente e eu a sigo, percebo novos detalhes do local: prédios com portas estreitas e compridas, grandes fechaduras as mantêm fechadas, vasos sem nenhuma planta se precipitam nas sacadas, paralelepípedos formam as ruas, anúncios de novos produtos: celulares, vídeo games e computadores, encravado no chão o velho trilho de um inexistente bondinho; cada vez mais a paisagem se tinge de um anacronismo impossível. Agora já é possível distingui algumas cores, alguns tons de verde e cinza como se estivesse prestes a amanhecer. Ela para sob a luz mais forte da rua, estamos tão perto que no negro dos seus olhos posso ver espelhado o meu rosto, ela me olha e diz alguma coisa que não entendo, eu digo.

– Amanhã quando eu acordar vou te procurar pelas ruas desta cidade.

Acordo e me surpreendo com minhas próprias palavras neste sonho, como se isto fosse uma promessa e agora eu tivesse que cumprir uma promessa feita num sonho. Isto é absurdo, eu sei, mas esta mulher ganha existência e corpo palpável no meu pensamento, agora eu sei a exata expressão dos seus olhos e até posso sentir seu hálito quente na madrugada de Manaus.

Pela manhã procuro reconhecer a mulher do sonho no rosto das mulheres que encontro no café do hotel, nas ruas, olhando pela janela dos táxis, no restaurante. Procuro alguma semelhança da mulher de vestido vermelho nas mulheres com as quais converso, talvez elas se pareçam, mas eu sei que nenhuma delas é ela. Sei que se o seu rosto aparecer por um segundo que seja no meio desta multidão eu a reconhecerei imediatamente, mas esta mulher não existe, ela é apenas um sonho. Certa vez li alguma coisa sobre de que são feitos os sonhos, mas não lembro agora o que o autor queria dizer. Estou de frente para o Teatro Amazonas, pessoas de todas as partes do Brasil, algumas de outros lugares do mundo passam pelo largo, a noite cai, sento-me em um dos bancos e espero a mulher de vestido vermelho pisar com seus pés descalços nas pedras-sabão do largo, mas ela não vem.

Cansado, volto ao hotel e durmo quase imediatamente, sonho mais uma vez com esta mulher. Agora eu posso ouvir sua voz e entender o ela diz.

– Não demore que o tempo é curto e eu estou te esperando.

Eu vou tocar o seu corpo e neste momento ela desaparece numa rua escura e sem saída, eu fico sozinho na rua abandonada e o meu sonho se enche de tristeza.

Já não consigo pensar em outra coisa a não ser nestes sonhos. Penso que devo estar ficando louco quando imagino que a mulher possa estar do outro lado da porta, devo abrir a porta e pedir que ela entre, mas sei que ela não está lá fora, ela não está em lugar nenhum. Agora é tarde, o desejo irracional e absurdo de encontrar uma mulher que não existe se apossa da minha vida.

É domingo, caminho por todas as ruas tentando encontrar a mulher, na Avenida Eduardo Ribeiro há um aglomerado de pessoas, alguém me diz que é uma feira que acontece todos os domingos. Barracas de café regional e de artesanato estão espalhadas por todos os lados. Milhares de mulheres, nenhuma está descalça usando vestido vermelho.

Entardece em Manaus, as ruas do centro pouco a pouco se acalmam. Perdi a direção para onde fica o hotel, de repente me vejo vagando sozinho por uma rua deserta, ratos surgem por um esgoto entreaberto. Sei que se eu continuar andando vou encontrar o caminho de volta para o hotel, mas imagino que a mulher possa surgir em uma dessas ruas como num sonho. Prédios antigos estão erguidos por todos os lados, alguns em ruínas. Ninguém passa pelas ruas, nem parece haver alguém morando nos prédios, silêncio, é possível ouvir um barulho de música ao longe. Todas as lojas estão fechadas, mas as placas e os letreiros continuam nas ruas. Caminho lentamente, não há um único movimento, nenhum barulho, até que surge uma mulher a poucos metros de mim, como estamos sós na rua ela parece muito distante, mas eu posso perceber que ela está descalça e usa um vestido vermelho pouco acima do joelho, levemente decotado deixando ver o início dos seus seios. É ela, eu sei, sei que ela existe. Ela me estende a mão e diz – vem. Meus passos vacilam e meu coração se perturba, mas eu sei que a melhor maneira de se livrar de uma obsessão é se entregando a ela, completamente.

Estamos numa sala abandonada que um dia parece ter sido um escritório ou uma loja, paredes brancas desbotadas, ramos de ervas crescem pelas infiltrações. A mulher faz um movimento com o corpo e o seu vestido escorrega até o chão, ela sai de dentro dele como se saísse de dentro de um casulo ou de uma concha. A luz quase apagada do teto reflete sobre seu corpo nu, ela se aproxima pega a minha mão e a coloca sobre o seu ventre, palpitações são transmitidas neste contato e o meu corpo estremece. Minhas mãos se precipitam pelo suave relevo do seu púbis, sinto o seu sexo úmido como orvalho, ela entreabre os lábios num murmúrio e eu sou tomado de uma força desconhecida.

Sem saber direito como tudo aconteceu acordo pela manhã no meu quarto de hotel, esta é a quarta noite que passei nesta cidade e a primeira que não sonhei com ela. Agora o cheiro do seu corpo está impregnado no meu, embora eu não saiba seu nome e não conheça sua história me sinto ligado de alguma forma misteriosa a essa mulher. Preciso vê-la mais uma vez, não entendo o que tudo isso significa. Tudo parece tão surreal, mas é como se eu começasse a viver verdadeiramente naquele encontro, como se tudo que aconteceu antes na minha vida fosse apenas um ensaio, uma longa preparação para aquele momento, alguma coisa vital e terrível me fora transmitido por esta mulher.

Volto ao local do encontro, as lojas já abriram e uma pequena multidão se forma na entrada da sala onde a encontrei. Peritos do IML recolhem num caixa vazada o corpo de uma mulher, ela esta descalça e usa um vestido vermelho, meu sonho vira pesadelo. Num gesto inconsequente tento me aproximar e sou detido por um policial. – você conhecia esta mulher? Ele pergunta. – Sim, não. Eu digo atordoado. – Conhecia ou não conhecia? O meu desespero encoraja a sua arrogância, ele me pega pelo braço e faz outras perguntas. Digo a ele que estive com essa mulher ontem à noite, mas eu não sei o seu nome. – Eu não sou daqui, ontem foi a primeira vez que vi essa mulher, eu sonhava com ela. O que eu digo não faz sentido, mas ele me olha e vê alguma coisa na minha cara que faz com que acredite em mim, pega meu contato e diz que serei chamado para depor. Volto para o hotel achando que o mundo é um lugar hostil, perigoso e sem sentido.

No dia seguinte recebo uma intimação para depor. Não sei como a mulher morreu, ela pode ter sido assassinada, talvez eles desconfiem de mim. O que eu vou dizer a eles? Penso no meu pai me ameaçando e dizendo que eu não sei me defender. Estou confuso, penso em fugir. Na delegacia, um delegado gordo com ar de enfado pede que eu sente numa cadeira em frente a sua mesa. Ele examina alguns papéis, parece não dar nenhuma importância ao caso. Estou nervoso, mas ele nem percebe. – Você disse que esteve com a mulher uma noite antes de encontrarmos o corpo, como foi?

– Era domingo, as ruas estavam vazias, eu perdi o rumo do hotel. Encontrei a mulher na entrada daquela sala. (Pensei em dizer que sonhei com ela três noites seguidas antes de encontrá-la, mas não falei nada. Ninguém acreditaria nesta história.)

O delegado tirou de um envelope pardo duas fotografias, pôs sobre a mesa e empurrou para mim. – Tem certeza que foi essa a mulher que você encontrou domingo à noite? Olhei para as fotografias, em uma delas aparecia o rosto de uma mulher, um rosto desbotado como de um retrato antigo, mas vi no canto esquerdo da foto a data impressa automaticamente, 18-07-2010; noutra aparecia o corpo inteiro, o vestido vermelho em contraste com o cadáver parecia ainda mais vermelho. – eu jamais esqueceria este rosto, encontrei esta mulher noite passada quando caminhava por aquela rua, depois não lembro o que aconteceu. Eu ia acrescentar mais alguma coisa, pois eu estava me comprometendo, mas ele me interrompeu. – Olha aqui, meu rapaz, nós não gostamos de brincadeiras aqui. Você deve estar confuso, eu entendo, mas é impossível que você tenha se encontrado com esta mulher ontem à noite, pois esta mulher já estava morta a mais de três dias. Os dados do legista confirmam a data da morte e pelo estado do corpo podemos facilmente perceber que ela morreu já faz algumas dias, aliás aquela é uma sala abandonada, só foi possível encontrar o corpo pelo mal cheiro que os camelôs sentiram. Agora volte para seu hotel e pare de se aventurar sozinho à noite por ruas escuras.

O delegado não disse o nome da mulher. Continuo sem saber o seu nome e sem conhecer a sua história. Talvez ela tivesse uma família, um filho ou um amante, eu nunca saberei. Alguma coisa profunda se fez em mim, não compreendo o que aconteceu, nem procuro compreender. Apenas fecho os olhos e vejo a mulher sair de dentro do vestido, seu corpo feito de sonho e desejo se confunde com o meu e eu sinto aquilo que deve sentir um homem confrontado em seus limites.