Inácio Oliveira
O que eu vou contar é
coisa que nem a mais prodigiosa das imaginações humanas poderia conceber, o que
por si só já prova a veracidade desta história. Cheguei a Manaus no dia quinze
de julho de 2010, como muitos que vieram para esta cidade eu também viera para
trabalhar no Distrito Industrial. Havia me formado em engenharia da produção
dois anos antes em São Paulo, mas não conseguia emprego. Em São Paulo o mercado
é por demais competitivo e a crise financeira dificultava as contratações. Agora
que a crise arrefecera eu tentava a sorte em Manaus, aqui faltavam engenheiros,
eu podia conseguir um bom emprego, ganhar dinheiro e construir uma carreira. No
início muitas coisas me intrigaram nesta cidade: suas ruas labirínticas e seus
igarapés soterrados, sua gente e sua miséria em contraste com indústria
ininterrupta, sua arquitetura irregular e a nostalgia de um passado glorioso do
qual restaram apenas vestígios, a ideia de uma grande cidade incrustada na
floresta me parecia fascinante, mesmo assim eu ainda não tivera tempo de conhecê-la
melhor, o que eu sabia fazia parte do trajeto do aeroporto até o hotel, mas
tudo começou na primeira noite em que estive aqui. Esta história inicia-se com
um sonho.
Estou sozinho entre várias
ruas estreitas que se bifurcam, algumas parecem feitas de pedra. Prédios
antigos estão erguidos por todos os lados, alguns em ruínas. Ninguém passa
pelas ruas, nem parece haver alguém morando nos prédios, ou então todos dormem,
o silêncio é completo, é possível ouvir o som dos meus próprios passos pisando
nas pedras. Curioso que todas as ruas e prédios estão em preto e branco como
num filme antigo, até as lâmpadas nos portes são brancas contra o fundo escuro
da noite, no entanto tudo parece nítido e absurdamente real, os prédios são
identificáveis com seus detalhes em art nouveau,
as placas podem ser lidas facilmente: vendem-se eletrodomésticos,
eletroeletrônicos, ar condicionados, DVD, TV de LED, promoção, 12 vezes sem
juros no cartão de crédito. Apesar de nunca ter estado em lugar semelhante
tenho a certeza que isto é Manaus. Caminho lentamente pelas ruas, não há um
único movimento, nenhum barulho, até que surge uma mulher a poucos metros de
mim, como estamos sós na rua ela parece muito distante, mas eu posso perceber
que ela está descalça e usa um vestido vermelho pouco acima do joelho,
levemente decotado deixando ver o início dos seus seios. Esta mulher com seu
vestido vermelho é a única coisa colorida na paisagem monocromática, do seu
vestido parece emanar uma ínfima luz que ilumina ao seu redor como a última
centelha de uma fogueira. Ela possui uma beleza incomum, sua pele é de um
moreno indefinível e seus olhos são negros, mais negros que noite que nos
rodeia, ela me estende a mão e vai dizer alguma coisa, neste instante eu
acordo.
Geralmente nunca lembro
direito dos sonhos depois que acordo, mas este me deixa a estranha sensação de
ter vivido uma experiência real. Chego a me aborrecer por ter acordado antes
daquela mulher dizer alguma coisa. O que ela me diria? Este sonho me dá uma
leve satisfação em consolo ao incomodo de se estar sozinho numa cidade estranha
e distante, longe de tudo, neste clima abafado e insuportavelmente quente; este
sonho me permite pensar que Manaus talvez possa ser a cidade de grandes
aventuras das quais precisa minha vida. Grandes expectativas tomam forma no meu
pensamento, no fim tudo se condensa numa mulher descalça usando um vestido
vermelho.
Travei contato com uma
empresa japonesa e há uma grande chance deles me contratarem. Mais um dia em
Manaus e eu posso perceber que a cidade não é tão exótica quanto eu imaginara.
É noite e eu não tenho para onde ir, me resta apenas conhecer algum restaurante
por perto e voltar para o hotel. Tento dormir e não consigo, aqui tenho sempre
a sensação de estar submerso. Penso no sonho que tive noite passada, na verdade
pensei neste sonho várias vezes durante o dia, ao dormir sonho com ela
novamente.
Estamos no mesmo lugar da
última vez. Ela caminha na minha frente e eu a sigo, percebo novos detalhes do
local: prédios com portas estreitas e compridas, grandes fechaduras as mantêm
fechadas, vasos sem nenhuma planta se precipitam nas sacadas, paralelepípedos
formam as ruas, anúncios de novos produtos: celulares, vídeo games e
computadores, encravado no chão o velho trilho de um inexistente bondinho; cada
vez mais a paisagem se tinge de um anacronismo impossível. Agora já é possível
distingui algumas cores, alguns tons de verde e cinza como se estivesse prestes
a amanhecer. Ela para sob a luz mais forte da rua, estamos tão perto que no
negro dos seus olhos posso ver espelhado o meu rosto, ela me olha e diz alguma
coisa que não entendo, eu digo.
– Amanhã quando eu
acordar vou te procurar pelas ruas desta cidade.
Acordo e me surpreendo
com minhas próprias palavras neste sonho, como se isto fosse uma promessa e
agora eu tivesse que cumprir uma promessa feita num sonho. Isto é absurdo, eu
sei, mas esta mulher ganha existência e corpo palpável no meu pensamento, agora
eu sei a exata expressão dos seus olhos e até posso sentir seu hálito quente na
madrugada de Manaus.
Pela manhã procuro
reconhecer a mulher do sonho no rosto das mulheres que encontro no café do
hotel, nas ruas, olhando pela janela dos táxis, no restaurante. Procuro alguma
semelhança da mulher de vestido vermelho nas mulheres com as quais converso,
talvez elas se pareçam, mas eu sei que nenhuma delas é ela. Sei que se o seu rosto aparecer por um segundo que seja no
meio desta multidão eu a reconhecerei imediatamente, mas esta mulher não
existe, ela é apenas um sonho. Certa vez li alguma coisa sobre de que são
feitos os sonhos, mas não lembro agora o que o autor queria dizer. Estou de
frente para o Teatro Amazonas, pessoas de todas as partes do Brasil, algumas de
outros lugares do mundo passam pelo largo, a noite cai, sento-me em um dos
bancos e espero a mulher de vestido vermelho pisar com seus pés descalços nas
pedras-sabão do largo, mas ela não vem.
Cansado, volto ao hotel e
durmo quase imediatamente, sonho mais uma vez com esta mulher. Agora eu posso ouvir
sua voz e entender o ela diz.
– Não demore que o tempo
é curto e eu estou te esperando.
Eu vou tocar o seu corpo
e neste momento ela desaparece numa rua escura e sem saída, eu fico sozinho na
rua abandonada e o meu sonho se enche de tristeza.
Já não consigo pensar em
outra coisa a não ser nestes sonhos. Penso que devo estar ficando louco quando imagino
que a mulher possa estar do outro lado da porta, devo abrir a porta e pedir que
ela entre, mas sei que ela não está lá fora, ela não está em lugar nenhum.
Agora é tarde, o desejo irracional e absurdo de encontrar uma mulher que não
existe se apossa da minha vida.
É domingo, caminho por
todas as ruas tentando encontrar a mulher, na Avenida Eduardo Ribeiro há um
aglomerado de pessoas, alguém me diz que é uma feira que acontece todos os
domingos. Barracas de café regional e de artesanato estão espalhadas por todos
os lados. Milhares de mulheres, nenhuma está descalça usando vestido vermelho.
Entardece em Manaus, as
ruas do centro pouco a pouco se acalmam. Perdi a direção para onde fica o
hotel, de repente me vejo vagando sozinho por uma rua deserta, ratos surgem por
um esgoto entreaberto. Sei que se eu continuar andando vou encontrar o caminho de
volta para o hotel, mas imagino que a mulher possa surgir em uma dessas ruas
como num sonho. Prédios antigos estão erguidos por todos os lados, alguns em
ruínas. Ninguém passa pelas ruas, nem parece haver alguém morando nos prédios,
silêncio, é possível ouvir um barulho de música ao longe. Todas as lojas estão
fechadas, mas as placas e os letreiros continuam nas ruas. Caminho lentamente,
não há um único movimento, nenhum barulho, até que surge uma mulher a poucos
metros de mim, como estamos sós na rua ela parece muito distante, mas eu posso
perceber que ela está descalça e usa um vestido vermelho pouco acima do joelho,
levemente decotado deixando ver o início dos seus seios. É ela, eu sei, sei que
ela existe. Ela me estende a mão e diz – vem. Meus passos vacilam e meu coração
se perturba, mas eu sei que a melhor maneira de se livrar de uma obsessão é se
entregando a ela, completamente.
Estamos numa sala
abandonada que um dia parece ter sido um escritório ou uma loja, paredes
brancas desbotadas, ramos de ervas crescem pelas infiltrações. A mulher faz um
movimento com o corpo e o seu vestido escorrega até o chão, ela sai de dentro
dele como se saísse de dentro de um casulo ou de uma concha. A luz quase
apagada do teto reflete sobre seu corpo nu, ela se aproxima pega a minha mão e
a coloca sobre o seu ventre, palpitações são transmitidas neste contato e o meu
corpo estremece. Minhas mãos se precipitam pelo suave relevo do seu púbis,
sinto o seu sexo úmido como orvalho, ela entreabre os lábios num murmúrio e eu
sou tomado de uma força desconhecida.
Sem saber direito como
tudo aconteceu acordo pela manhã no meu quarto de hotel, esta é a quarta noite
que passei nesta cidade e a primeira que não sonhei com ela. Agora o cheiro do
seu corpo está impregnado no meu, embora eu não saiba seu nome e não conheça
sua história me sinto ligado de alguma forma misteriosa a essa mulher. Preciso
vê-la mais uma vez, não entendo o que tudo isso significa. Tudo parece tão
surreal, mas é como se eu começasse a viver verdadeiramente naquele encontro,
como se tudo que aconteceu antes na minha vida fosse apenas um ensaio, uma
longa preparação para aquele momento, alguma coisa vital e terrível me fora
transmitido por esta mulher.
Volto ao local do
encontro, as lojas já abriram e uma pequena multidão se forma na entrada da
sala onde a encontrei. Peritos do IML recolhem num caixa vazada o corpo de uma
mulher, ela esta descalça e usa um vestido vermelho, meu sonho vira pesadelo.
Num gesto inconsequente tento me aproximar e sou detido por um policial. – você
conhecia esta mulher? Ele pergunta. – Sim, não. Eu digo atordoado. – Conhecia
ou não conhecia? O meu desespero encoraja a sua arrogância, ele me pega pelo
braço e faz outras perguntas. Digo a ele que estive com essa mulher ontem à
noite, mas eu não sei o seu nome. – Eu não sou daqui, ontem foi a primeira vez que
vi essa mulher, eu sonhava com ela. O que eu digo não faz sentido, mas ele me
olha e vê alguma coisa na minha cara que faz com que acredite em mim, pega meu
contato e diz que serei chamado para depor. Volto para o hotel achando que o
mundo é um lugar hostil, perigoso e sem sentido.
No dia seguinte recebo
uma intimação para depor. Não sei como a mulher morreu, ela pode ter sido
assassinada, talvez eles desconfiem de mim. O que eu vou dizer a eles? Penso no
meu pai me ameaçando e dizendo que eu não sei me defender. Estou confuso, penso
em fugir. Na delegacia, um delegado gordo com ar de enfado pede que eu sente
numa cadeira em frente a sua mesa. Ele examina alguns papéis, parece não dar
nenhuma importância ao caso. Estou nervoso, mas ele nem percebe. – Você disse
que esteve com a mulher uma noite antes de encontrarmos o corpo, como foi?
– Era domingo, as ruas
estavam vazias, eu perdi o rumo do hotel. Encontrei a mulher na entrada daquela
sala. (Pensei em dizer que sonhei com ela três noites seguidas antes de
encontrá-la, mas não falei nada. Ninguém acreditaria nesta história.)
O delegado tirou de um
envelope pardo duas fotografias, pôs sobre a mesa e empurrou para mim. – Tem
certeza que foi essa a mulher que você encontrou domingo à noite? Olhei para as
fotografias, em uma delas aparecia o rosto de uma mulher, um rosto desbotado
como de um retrato antigo, mas vi no canto esquerdo da foto a data impressa
automaticamente, 18-07-2010; noutra aparecia o corpo inteiro, o vestido
vermelho em contraste com o cadáver parecia ainda mais vermelho. – eu jamais
esqueceria este rosto, encontrei esta mulher noite passada quando caminhava por
aquela rua, depois não lembro o que aconteceu. Eu ia acrescentar mais alguma
coisa, pois eu estava me comprometendo, mas ele me interrompeu. – Olha aqui,
meu rapaz, nós não gostamos de brincadeiras aqui. Você deve estar confuso, eu
entendo, mas é impossível que você tenha se encontrado com esta mulher ontem à
noite, pois esta mulher já estava morta a mais de três dias. Os dados do
legista confirmam a data da morte e pelo estado do corpo podemos facilmente
perceber que ela morreu já faz algumas dias, aliás aquela é uma sala
abandonada, só foi possível encontrar o corpo pelo mal cheiro que os camelôs
sentiram. Agora volte para seu hotel e pare de se aventurar sozinho à noite por
ruas escuras.
O delegado não disse o nome
da mulher. Continuo sem saber o seu nome e sem conhecer a sua história. Talvez
ela tivesse uma família, um filho ou um amante, eu nunca saberei. Alguma coisa
profunda se fez em mim, não compreendo o que aconteceu, nem procuro
compreender. Apenas fecho os olhos e vejo a mulher sair de dentro do vestido,
seu corpo feito de sonho e desejo se confunde com o meu e eu sinto aquilo que
deve sentir um homem confrontado em seus limites.