Amigos do Fingidor

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Augusto, poeta expressionista!


                                          Hildeberto Barbosa Filho

 

            O “infortúnio crítico” acerca da obra poética de Augusto dos Anjos, a que se referiu Eduardo Portela, começa, aos poucos, a ser desfeito, na medida em que, em lugar do eu empírico do poeta, isto é, sua personalidade biográfica, toma-se, como objeto de investigação, a persona lírica, ou seja o eu poético, fruto da fantasia criadora e materializado pela injunção dos recursos corpóreos da tessitura textual, naquilo que ela contém de riqueza rítmico-melódica e semântico-imagética.

            Tal feito, se pode ser tributado, aqui e ali, a um que outro estudo pontual de críticos independentes e não vinculados às linhas de pesquisa da Universidade, deve-se, contudo, e com mais sistemático rigor, às abordagens universitárias que, alicerçadas em categorias teóricas operacionais e em métodos exploratórios eficazes, eficientes e efetivos, cada vez mais contribuem para abrir, enriquecer e verticalizar o olhar dos leitores sobre a singularidade técnico-literária, estilística e temático-ideológica do poeta paraibano.
 
            Vejo, assim, A invenção do expressionismo em Augusto dos Anjos, a princípio, dissertação de mestrado, ora publicada em livro, do poeta e escritor amazonense Zemaria Pinto.

            O primeiro trunfo do ensaio de Zemaria me parece a atitude, mais do escritor do que do pesquisador, perante os ingredientes da linguagem. Diferente das dissertações acadêmicas normalmente engessadas num complexo teórico mal assimilado e redigidas através de um português burocrático sem qualquer brilho de criatividade, quando não em visível desacordo com as mínimas exigências da correção e elegância vernacular, o autor procura exercitar um estilo ensaístico, de domínio próprio, dotado de autonomia, onde a objetividade e a clareza se associam à lógica cristalina e sugestiva das análises e interpretações que mobilizam o olhar crítico.

            Esta maneira de escrever revela, sem dúvida, um compromisso com o pensar. Um pensar que, sem abdicar de certas referências teóricas essenciais à elucidação do objeto de estudo escolhido, não sucumbe, todavia, ao seu imperativo, uma vez que, partindo de algumas premissas que tais referências sugerem, intenta imprimir uma perspectiva pessoal, sinalizando para novas possibilidades de leitura que o Eu, em sua congenial e flexível abertura típica da obra de arte, pode comportar.

            Só a título de exemplo, observem-se, na análise do poema “Os doentes”, os sinais comparativos que o estudioso aponta entre o movimento interno do texto e a clássica tópica da descida aos infernos, sobretudo ao inferno dantesco, com seu espetáculo grotesco e dramático, também peculiar ao longo poema de Augusto. Veja-se ainda a curiosa aproximação, potencialmente viável, das ideias nietzschianas a certas variações temáticas do Eu, o que a propósito bem observou Sandra Erickion, em Melancolia da criatividade em Augusto dos Anjos (2003), ou, em certo sentido, a força surrealista de algumas imagens assim como as surpreendentes antecipações kafkianas, latentes ou manifestas, nas camadas textuais dessa poesia incomparável.

            Outro aspecto que me chama a atenção no trabalho de Zemaria Pinto é a própria escolha temática: o expressionismo. Se, a rigor, o autor de “A ilha de Cipango” não inventou esta vertente artística, como a equívoca leitura do título pode sugerir, soube, em função sobretudo do Zeitgeist, isto é, o espírito do tempo, explorar como poucos uma das suas múltiplas variantes poéticas. Um dos méritos, portanto, deste ensaio consiste em verificar, descrever e sistematizar os elementos que podem contemplar uma possível linhagem expressionista no âmbito heteróclito e dissonante da poesia de Augusto dos Anjos.

            O que Gilberto Freyre apenas sugeriu en passant, num breve artigo de 1924, e o que Anatol Rosenfeld, por sua vez, tentou realizar, no ensaio “A costela de prata de Augusto dos Anjos” (1969), Zemaria o faz, e o faz como que reconhecendo, porém, sobremodo, organizando e aprofundando as diversas sugestões que se disseminam, aleatoriamente, pelos estudos de José Paulo Paes, Massaud Moisés, Lúcia Helena, Luiz Costa Lima, Ivan Junqueira e Sérgio Martagão Gesteira, entre outros.

            É preciso enfatizar, contudo, que o ensaísta não se contenta apenas em enumerar preliminarmente as características de uma estética “anti-retiniana”, ou seja, deformativa, como o expressionismo, entrevistas sobretudo numa visão antinaturalista das coisas, na fragmentação do eu e do mundo, nas atmosferas oníricas, na manifestação do grotesco, na recorrência de imagens macabras, enfim, na revelação de uma realidade ínfima, larvar, vermífuga, tão bem abordada por José Paulo Paes num pequeno ensaio de Transleituras (1995), intitulado “Uma microscopia do monstruoso: a estética do horror na poesia de Augusto dos Anjos”.

            Zemaria Pinto parte de dois conceitos-chave para articular toda sua argumentação. Valendo-se de Hugo Friedrich, em A estrutura da lírica moderna (1978)) e de Michael Hamburger, em A verdade da poesia (2007), retoma as diferenças entre eu empírico e eu lírico, para, daí, desdobrar o eu lírico numa espécie de “máscara lírica”, numa nova persona, cuja voz vai se responsabilizar pelo fluxo verbal da maior parte dos poemas do Eu. Segundo Zemaria, “a máscara lírica é um ato deliberado de criação do poeta-autor” e assegura, de certa maneira, o quanto Augusto dos Anjos tinha consciência de seu processo criativo. É com base nesta categoria que o ensaísta vai ler e analisar alguns poemas seminais do Eu, a exemplo de “Monólogo de uma sombra”, “Os doentes”, “As cismas do destino”, “Mistérios de um fósforo” e “Queixas noturnas”. Este, em especial, considerado o texto em que o poeta paraibano dá o salto estético para uma poesis mais madura e definitiva, aquela em que os componentes expressionistas se cristalizam de forma mais visível e recorrente.

            De Schopenhauer e do budismo, o ensaísta aproveita o conceito de “dor estética”, em certa clave, uma dor fingida ao modo pessoano, evidenciada não pelo sentimento real do autor/eu empírico, mas forjada pela mediação da “máscara lírica”, a seu turno, construída pelo andamento dramático e narrativo de certos textos, através do complexo linguístico das imagens. Zemaria sustenta que esta “dor estética” possui “desdobramentos e exigências”, a saber: “a desindividualização ou anulação do eu; a negação do sentimento amoroso; o repúdio a qualquer forma de prazer”.

            Envolvida estilisticamente pela “dor estética”, a “máscara lírica” rejeita a representação aristotélica do mundo, desenvolvendo uma minuciosa e perplexa investigação dos fenômenos cósmicos e existenciais. Zemaria entende que, “além de mostrar a realidade deformada”, a “máscara lírica” elabora um “plano de trabalho”, segundo ele, “denunciar a degradação da humanidade e proclamar a inevitabilidade de mudanças radicais”. A degradação, ainda acrescenta o autor, concerne não só aos aspectos físicos e orgânicos dos seres, tão bem descrita em amplas passagens do Eu, como também às dimensões morais, representadas aqui pela “perversão e a corrupção dos costumes”.

            Fundado em pertinente bibliografia, mas sobremaneira atento à liberdade do olhar crítico, capaz de interpretações próprias, ousadas, inteligentes e sugestivas, mesmo que se possa discordar dessa ou daquela afirmação teórica interpretativa, o estudo de Zemaria Pinto, por estas e outras razões, é daqueles que fazem jus à densidade e beleza – estranha e surpreendente beleza! – da poesia de Augusto dos Anjos.
 
 
(Apresentação do livro A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos, que será lançado neste sábado, 02 de março, às 10h, na livraria Valer.)