Hildeberto
Barbosa Filho
O “infortúnio crítico” acerca da
obra poética de Augusto dos Anjos, a que se referiu Eduardo Portela, começa,
aos poucos, a ser desfeito, na medida em que, em lugar do eu empírico do poeta,
isto é, sua personalidade biográfica, toma-se, como objeto de investigação, a persona lírica, ou seja o eu poético,
fruto da fantasia criadora e materializado pela injunção dos recursos corpóreos
da tessitura textual, naquilo que ela contém de riqueza rítmico-melódica e
semântico-imagética.
Tal feito, se pode ser tributado,
aqui e ali, a um que outro estudo pontual de críticos independentes e não
vinculados às linhas de pesquisa da Universidade, deve-se, contudo, e com mais
sistemático rigor, às abordagens universitárias que, alicerçadas em categorias
teóricas operacionais e em métodos exploratórios eficazes, eficientes e
efetivos, cada vez mais contribuem para abrir, enriquecer e verticalizar o
olhar dos leitores sobre a singularidade técnico-literária, estilística e
temático-ideológica do poeta paraibano.
Vejo, assim, A invenção do expressionismo em Augusto dos Anjos, a princípio,
dissertação de mestrado, ora publicada em livro, do poeta e escritor amazonense
Zemaria Pinto.
O primeiro trunfo do ensaio de
Zemaria me parece a atitude, mais do escritor do que do pesquisador, perante os
ingredientes da linguagem. Diferente das dissertações acadêmicas normalmente
engessadas num complexo teórico mal assimilado e redigidas através de um
português burocrático sem qualquer brilho de criatividade, quando não em
visível desacordo com as mínimas exigências da correção e elegância vernacular,
o autor procura exercitar um estilo ensaístico, de domínio próprio, dotado de
autonomia, onde a objetividade e a clareza se associam à lógica cristalina e
sugestiva das análises e interpretações que mobilizam o olhar crítico.
Esta maneira de escrever revela, sem
dúvida, um compromisso com o pensar. Um pensar que, sem abdicar de certas referências
teóricas essenciais à elucidação do objeto de estudo escolhido, não sucumbe,
todavia, ao seu imperativo, uma vez que, partindo de algumas premissas que tais
referências sugerem, intenta imprimir uma perspectiva pessoal, sinalizando para
novas possibilidades de leitura que o Eu,
em sua congenial e flexível abertura típica da obra de arte, pode comportar.
Só a título de exemplo, observem-se,
na análise do poema “Os doentes”, os sinais comparativos que o estudioso aponta
entre o movimento interno do texto e a clássica tópica da descida aos infernos,
sobretudo ao inferno dantesco, com seu espetáculo grotesco e dramático, também
peculiar ao longo poema de Augusto. Veja-se ainda a curiosa aproximação,
potencialmente viável, das ideias nietzschianas a certas variações temáticas do
Eu, o que a propósito bem observou
Sandra Erickion, em Melancolia da
criatividade em Augusto dos Anjos (2003), ou, em certo sentido, a força
surrealista de algumas imagens assim como as surpreendentes antecipações
kafkianas, latentes ou manifestas, nas camadas textuais dessa poesia incomparável.
Outro aspecto que me chama a atenção
no trabalho de Zemaria Pinto é a própria escolha temática: o expressionismo.
Se, a rigor, o autor de “A ilha de Cipango” não inventou esta vertente
artística, como a equívoca leitura do título pode sugerir, soube, em função
sobretudo do Zeitgeist, isto é, o
espírito do tempo, explorar como poucos uma das suas múltiplas variantes
poéticas. Um dos méritos, portanto, deste ensaio consiste em verificar,
descrever e sistematizar os elementos que podem contemplar uma possível
linhagem expressionista no âmbito heteróclito e dissonante da poesia de Augusto
dos Anjos.
O que Gilberto Freyre apenas sugeriu
en passant, num breve artigo de 1924,
e o que Anatol Rosenfeld, por sua vez, tentou realizar, no ensaio “A costela de
prata de Augusto dos Anjos” (1969), Zemaria o faz, e o faz como que reconhecendo,
porém, sobremodo, organizando e aprofundando as diversas sugestões que se
disseminam, aleatoriamente, pelos estudos de José Paulo Paes, Massaud Moisés, Lúcia
Helena, Luiz Costa Lima, Ivan Junqueira e Sérgio Martagão Gesteira, entre
outros.
É preciso enfatizar, contudo, que o
ensaísta não se contenta apenas em enumerar preliminarmente as características
de uma estética “anti-retiniana”, ou seja, deformativa, como o expressionismo,
entrevistas sobretudo numa visão antinaturalista das coisas, na fragmentação do
eu e do mundo, nas atmosferas oníricas, na manifestação do grotesco, na
recorrência de imagens macabras, enfim, na revelação de uma realidade ínfima,
larvar, vermífuga, tão bem abordada por José Paulo Paes num pequeno ensaio de Transleituras (1995), intitulado “Uma
microscopia do monstruoso: a estética do horror na poesia de Augusto dos
Anjos”.
Zemaria Pinto parte de dois conceitos-chave
para articular toda sua argumentação. Valendo-se de Hugo Friedrich, em A estrutura da lírica moderna (1978)) e
de Michael Hamburger, em A verdade da
poesia (2007), retoma as diferenças entre eu empírico e eu lírico, para,
daí, desdobrar o eu lírico numa espécie de “máscara lírica”, numa nova persona, cuja voz vai se responsabilizar
pelo fluxo verbal da maior parte dos poemas do Eu. Segundo Zemaria, “a máscara lírica é um ato deliberado de
criação do poeta-autor” e assegura, de certa maneira, o quanto Augusto dos
Anjos tinha consciência de seu processo criativo. É com base nesta categoria
que o ensaísta vai ler e analisar alguns poemas seminais do Eu, a exemplo de “Monólogo de uma
sombra”, “Os doentes”, “As cismas do destino”, “Mistérios de um fósforo” e
“Queixas noturnas”. Este, em especial, considerado o texto em que o poeta
paraibano dá o salto estético para uma poesis
mais madura e definitiva, aquela em que os componentes expressionistas se
cristalizam de forma mais visível e recorrente.
De Schopenhauer e do budismo, o
ensaísta aproveita o conceito de “dor estética”, em certa clave, uma dor
fingida ao modo pessoano, evidenciada não pelo sentimento real do autor/eu
empírico, mas forjada pela mediação da “máscara lírica”, a seu turno, construída
pelo andamento dramático e narrativo de certos textos, através do complexo
linguístico das imagens. Zemaria sustenta que esta “dor estética” possui
“desdobramentos e exigências”, a saber: “a desindividualização ou anulação do
eu; a negação do sentimento amoroso; o repúdio a qualquer forma de prazer”.
Envolvida estilisticamente pela “dor
estética”, a “máscara lírica” rejeita a representação aristotélica do mundo,
desenvolvendo uma minuciosa e perplexa investigação dos fenômenos cósmicos e
existenciais. Zemaria entende que, “além de mostrar a realidade deformada”, a
“máscara lírica” elabora um “plano de trabalho”, segundo ele, “denunciar a
degradação da humanidade e proclamar a inevitabilidade de mudanças radicais”. A
degradação, ainda acrescenta o autor, concerne não só aos aspectos físicos e
orgânicos dos seres, tão bem descrita em amplas passagens do Eu, como também às dimensões morais,
representadas aqui pela “perversão e a corrupção dos costumes”.
Fundado em pertinente bibliografia,
mas sobremaneira atento à liberdade do olhar crítico, capaz de interpretações
próprias, ousadas, inteligentes e sugestivas, mesmo que se possa discordar
dessa ou daquela afirmação teórica interpretativa, o estudo de Zemaria Pinto,
por estas e outras razões, é daqueles que fazem jus à densidade e beleza –
estranha e surpreendente beleza! – da poesia de Augusto dos Anjos.
(Apresentação do livro A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos, que será lançado neste sábado, 02 de março, às 10h, na livraria Valer.)