Amigos do Fingidor

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Miguel Servet: a resistência aos dogmas católicos e protestantes


João Bosco Botelho


 

A triste lembrança da execução do médico espanhol Miguel Servet, queimado vivo no fogo lento da madeira verde, em Genebra, no dia 27 de outubro de 1553, retrata a trágica perseguição aos homens e mulheres que resistiram aos dogmas encobertos pelo véu da intolerância de católicos e protestantes.

Miguel Servet nasceu em 1509, na aldeia espanhola Villanueva de Sigena. Tornou-se homem de fé e ciência. Como cristão devoto, entendia a Bíblia como o livro divino que transcrevia a palavra de Deus, convicto da origem da vida descrita no Gênese. Nesse sentido, nas dissecções dos cadáveres, incansavelmente, procurava nos pulmões o sopro da vida.

Sem achar o sopro do milagre, a busca propiciou a mais importante contribuição para a anatomia do século 16: a circulação do sangue entre o coração e os pulmões. Com clareza, o médico espanhol descreveu como o sangue caminhava do coração ao pulmão e vice-versa, por meio das veias e artérias pulmonares, que saiam e entravam no coração.

Miguel Servet estudou na Universidade de Tolouse (onde eu recebi a maior de todas as honra acadêmicas: as insígnias de Doutor Honoris Causa). Esse centro de ensino, em 1530, registrou dez mil alunos e seiscentos professores. Convivendo com os primeiros ares de maior liberdade, na alvorada renascentista, estudou Direito. Nessa ocasião, desafiando a autoridade papal, ao protestar com veemência contra o Código Justiniano, que legislava a pena de morte a todos que negassem a doutrina da Trindade, plantou o próprio calvário de sofrimento.

A partir da leitura atenta da Bíblia, Servet comprovou a absoluta ausência de qualquer referência à Trindade. Ele escreveu no seu livro Sobre os erros da Trindade (De Trinitatis erroribus), publicado em 1531, que a doutrina da Trindade seria um conjunto de sofismas originados no Concílio de Niceia, realizado no ano de 325. A Trindade não estava no livro sagrado!

Homem de profunda fé, Servet admitia analogia bíblica entre o espírito e o sopro. Com discurso teológico pleno de fé, escreveu no seu famoso livro Christianismi Restituio as novas concepções que modificaram para sempre o conhecimento da pequena circulação que leva o sangue do coração ao pulmão e o traz de volta já oxigenado, para ser distribuído por todo o corpo.

O desafio ao dogma aumentou a perseguição. O fim avizinhava-se. As contradições do poder de Roma uniram-se em torno de um objetivo maior: destruir o audacioso médico espanhol. Ao perceber o perigo iminente, fugiu em direção à Suíça, esperançoso da prolatada maior liberdade proposta pelos calvinistas. Triste engano! Ao defender o anabatismo, os calvinistas o encarceraram. No dia 27 de outubro de 1553, Miguel Servet foi queimado vivo no fogo lento da madeira verde para aumentar o sofrimento.

A brutal perseguição e morte de Miguel Servet, o médico espanhol que resistiu até a morte aos dogmas católicos e protestantes, ainda hoje ampara a reflexão das iniquidades que amparam a intolerância religiosa.