Amigos do Fingidor

quinta-feira, 20 de março de 2014

Abordagens teóricas do milagre como práticas de cura




João Bosco Botelho

 

A abordagem tomista do milagre foi duramente criticada por diversos filósofos. Voltaire e Renan argumentaram que sendo as leis natu­rais, criadas pela Divindade, absolutamente coerentes, é falso supor que possa existir qualquer ação física contrária a elas. Espinosa de maneira semelhante recusou a existência do milagre, apoiado na premissa de que a criação não tendo sido li­vre, mas feita pela necessidade da sua natureza transcendente, era impossível a intervenção extraordinária para mudar o seu curso.

O golpe mais forte recebido pela compreensão cristã do SINAL foi sustentado pelo agnosticismo kantiano, firmado contra o de­terminismo absoluto. De acordo com Kant, não existem leis fixas e constantes porque a estabilidade provém exclusivamente do nosso aspecto subjetivo de conhecê‑las. É incognoscível porque não temos como distinguir as formas variáveis e extraordinárias de agir da natureza.

A resistência, refutando a natureza divina do SINAL, contri­buiu para o milagre perder o valor ontológico e o argumento apologético, conservando somente o aspecto simbólico da fé.

Com o intuito de reforçar o conjunto do questionamento, pode­mos lembrar a imutabilidade das leis matemáticas regendo a essên­cia da coisa, expressando o modo de ser. Assim, em nenhuma hipóte­se, nem por milagre, o triângulo poderá deixar de ter os três ângulos. Por outro lado, se considerarmos a necessidade hipotética de as leis para reger as relações físicas entre as coisas, hoje compre­endidas a partir das três forças (gravitacional, eletromagnética e nuclear), os acontecimentos situados fora delas estariam obri­gatoriamente contidos em outra manifestação, ainda desconhecida, da natureza invisível. Assim, se o fogo não queimar a pele, o homem morto voltar à vida ou um enfermo incurável recuperar a saúde numa fração de segundo, podem estar somente evidenciando os aspectos incognoscíveis da matéria.

No Ocidente cristão medieval, os santuários curadores de Compostela e Jerusalém viveram vários séculos de glória recebendo peregrinos de toda a cristandade. Na atualidade, os de Fátima, em Portugal, e de Lourdes, na França, são os mais procura­dos. Mais recentemente, surgiu o de Medjugorje, na Iugoslávia. Os três sítios têm como expressão de fé, justificando a santidade, a con­vicção dos fiéis na materialização, circunstancial e imprevisí­vel, da Virgem Maria, a Mãe de Jesus.

Para evitar os excessos dos fiéis bem intencionados, foi criado, em 1882, uma comissão formada de médicos e religiosos, para analisar a veracidade dos SINAIS ocorridos em Lourdes. Apesar das milhares de curas descritas pelos peregrinos, a igreja católica anunciou, recentemente, a ocorrência do 65o milagre (Folha de São Paulo, 07/07/1989). Na época, tratava‑se de uma jovem siciliana de 25 anos, por­tadora de uma forma incurável de câncer ósseo no joelho. Em 1976, depois de ela permanecer uma semana próxima do santuário, um ano depois, houve o completo desaparecimento da lesão.

Existe complexa associação entre o sentimento de fé que envolve o peregrino e a medicina popular vivenciada por ele, com a forte influência da religião. No Brasil, nos estratos sociais privilegiados de tradição cristã, são mais enfocadas as procuras de Lourdes, Fatima e Medjugorje. Porém, existem outros locais de peregrinação, como a basílica de Aparecida, a estátua do Padre Cícero, os centros de umbanda, as igrejas protestantes e grupos kardecistas, todos recebendo um número muito maior de crentes, vir­tualmente agregados aos mesmos componentes de fé e religiosidade.