Amigos do Fingidor

quinta-feira, 13 de março de 2014

Milagre como prática de cura: o invisível simplificado


 

João Bosco Botelho

 

Constitui equívoco essencial associar o milagre somente ao cristianismo. A convivência do homem crente com os fatos extraordinários – os milagres – materializados a partir do poder divino é, na realidade, história de longa duração.

Os cultos terapêuticos dos povos que habitaram as terras férteis das margens do Indo, do Nilo e da Mesopotâmia eram fortes e muito utilizados. Naquelas culturas, algumas com mais de 6.000 anos, a doença estava invariavelmente ligada ao pecado e à ação dos deuses ruins, maus.  

A cura, sempre de natureza religiosa, era obtida quando o curador identificava o deus mau antes de expulsá‑lo do corpo doente ou quando o enfermo, depois de confessar o agravo cometido, pagava certos tributos nos rituais de purificação. O agente da cura era também sacerdote e atuava como represen­tante do sagrado. Os povos da antiguidade estavam repletos de deuses e deusas taumaturgas. Entre as mais famosas figuram o deus Mitra, celebrado em muitos templos espalhados no Egito, e Asclé­pio, adorado em belas edificações do mundo grego antigo, como a de Epidauro, na ilha de Cós. Em todos os santuários, os peregrinos se dirigiram para suplicar a cura milagrosa.

Contudo, foi no Antigo Testamento (AT), no Pentateuco, que o milagre apareceu como SINAL, ligado à fé monoteísta, em contrapo­sição ao politeísmo dominante. O fundamento da fé, para a liturgia judaica, não é o simples milagre, mas sim a Criação como a existência concreta e estrutura da moral. Ela foi realizada acima de todas as leis da natureza, sendo o primeiro e o mais importante de todos os SINAIS. Assim Iahweh estabeleceu o ritmo das estações (Ge 8, 22), o curso das estrelas (Sl 148, 6), o movimento dos mares (Jó 38, 10), as leis do céu (Jó 38, 33) e da terra (Jr 33, 25).

A herança do judaísmo observa duas tendências nas interpreta­ções dos milagres. A primeira admite a Bíblia cheia deles, devendo constituir fonte de reflexão à pequenez do homem. A segunda está relacionada com as interpretações místicas do judaísmo contidas no Zohar, ou Livro dos Esplendores, escrito em torno do século 12, na Espanha. Nesse último, os rabinos não aceitaram a necessi­dade do SINAL porque existiria harmonia absoluta entre o Criador e a sua obra. A tradição semita também compreendeu a enfermidade como castigo pelas faltas cometidas contra a Lei (Ex 4, 6) e a saúde ligada à intervenção divina (Sl 38, 2‑6).

Os primeiros padres da cristandade fizeram uma fantástica elaboração teórica dos SINAIS do AT. Os milagres de Cristo, des­critos pelos quatro evangelistas, assumiram grande importância na apologética da nova religião. O tomismo compreendeu a importância do milagre na fé como um “fato extraordinário produzido por Deus”. Contudo os anjos bons e os Santos poderiam ser instrumentos na promoção dos acontecimentos situados à margem das leis naturais. Por outro lado, distinguiu o milagre do prodígio. Este último, simples simulacro, não era fruto do poder divino. Estabelecendo o juízo de valor, Thomas de Aquino dividiu o milagre em absolutos, ou de primeira ordem, e relativos, ou de segunda ordem. Todavia, só reconheceu o primeiro como verdadeiro porque superando, em si mesmo, todas as concepções da natureza criada, só Deus seria o autor. O relativo, ao contrário, poderia ser determinado através das forças do universo sensível ligadas ao demônio. O milagre apologético, sempre de primeira ordem, é aquele que serve de louvor. Deve ser perceptível e confirmar a origem teísta da revelação. Tem particular interesse o seu aspecto físico porque é observável nos corpos. Logo, a cura de uma doença, considerada fatal e irreversível, pode ser entendida como milagrosa e um SINAL de Deus.