João
Bosco Botelho
Em maio de
1986, as agências de notícias divulgaram a pajelança do cacique Raoni no
pesquisador Augusto Ruschi, gravemente enfermo, com cirrose hepática. O
aparecimento da doença foi associado ao veneno de um sapo dendrobata, que teria sido inoculado
no ornitólogo durante uma das suas viagens ao Amazonas.
As imagens
da pajelança foram vistas por milhões de pessoas, no mundo, fascinadas com o
cacique Raoni soprando fumaça de tabaco sobre o pesquisador e fazendo gestos
invocando os espíritos dos mortos, para ajudar na cura do grande naturalista.
O ritual se
prolongou alguns dias e não mudou o curso da enfermidade. O inesquecível
Augusto Ruschi morreu algumas semanas depois, num centro de tratamento
intensivo, em Vitória do Espírito Santo.
As
sociedades científicas divulgaram notas explicativas sobre certas
características das mais de quarenta espécies da família Dendrobatidae:
apesar de bem estudada, não existia registro de os venenos serem capazes de
determinar cirrose hepática. Esses anfíbios possuem algumas glândulas
subcutâneas onde secretam alcaloides que
em contato com a pele humana causam somente pequenas queimaduras na pele.
Chamou
atenção da imprensa internacional o apoio oferecido pelo presidente da
república para que o ritual fosse consumado o mais rápido possível, tendo
inclusive oferecido o transporte aéreo para levar o pajé até o pesquisador.
Como ponte para
compreender aquele interesse coletivo em torno da pajelança para salvar a vida
do ornitólogo, seria bom relembrar a importância do pajé tupinambá no Brasil
colônia.
Existem várias
expressões de origem tupi para designar o personagem que exercia durante os primeiros
séculos da colonização portuguesa o domínio das práticas de curas entre os
tupinambás. Stradelli reconhece o pajé
como sinônimo de paié: ''É o médico, o
conselheiro da tribo, o padre, o feiticeiro, o depositário autorizado da
ciência tradicional. Pajé não é um qualquer. Só os fortes de coração, os que
sabem superar as provas de iniciação, que têm o fôlego necessário para ser
pajé''. Por outro lado, pagi, pay, payni,
paié, paé, piaecé, piaché, pantché são variações de pajé, formadas etimologicamente por
pa-yé, aquele que diz o fim
ou profeta.
A
relevância social do pajé tupinambá pode ser entendida a partir das várias
descrições dos agentes coloniais, entre séculos 16 e 18. A maior parte
identificando-os como elementos de resistência à dominação; poucos, elogiando
os saberes historicamente acumulados.
O
jesuíta José de Anchieta, um dos primeiros a olhar o pajé como feroz inimigo,
escreveu: ''Já não ousas agora servir
de teus artifícios, perversos feiticeiros, entre povos que seguem a doutrina de
Cristo: já não podes com mãos mentirosas esfregar membros doentes...". Contrariamente,
o médico Guilherme Piso, chefe dos
Serviços Médicos das Índias Ocidentais, da comitiva de Maurício de Nassau, registrou:
“Prescindem de laboratórios, ademais, sempre têm à mão sucos verdes e frescos
de ervas. Rejeitam os remédios compostos de vários ingredientes, preferem os
mais simples”. Ao retornar para a Holanda, após a expulsão dos holandeses, Piso
levou consigo muitos remédios prescritos pelos pajés tupinambás, em especial as
que evitavam as amputações dos pés, quase sempre seguidas da penosa morte pela
infecção.
A esperança de curar o imortal ornitólogo
Augusto Ruschi com o sopro da pajelança estava justificada numa história de
longa duração.