Amigos do Fingidor

quinta-feira, 24 de abril de 2014

O pajé tupinambá



João Bosco Botelho


         Em maio de 1986, as agências de notícias divulgaram a pajelança do cacique Raoni no pesquisador Augusto Ruschi, gravemente enfermo, com cirrose hepática. O aparecimento da doença foi associado ao veneno de um sapo dendrobata, que teria sido inoculado no ornitólogo durante uma das suas viagens ao Amazonas.
         As imagens da pajelança foram vistas por milhões de pessoas, no mundo, fascinadas com o cacique Raoni soprando fumaça de tabaco sobre o pesquisador e fazendo gestos invocando os espíritos dos mortos, para ajudar na cura do grande naturalista.
         O ritual se prolongou alguns dias e não mudou o curso da enfermidade. O inesquecível Augusto Ruschi morreu algumas semanas depois, num centro de tratamento intensivo, em Vitória do Espírito Santo.
         As sociedades científicas divulgaram notas explicativas sobre certas características das mais de quarenta espécies da família Dendrobatidae: apesar de bem estudada, não existia registro de os venenos serem capazes de determinar cirrose hepática. Esses anfíbios possuem algumas glândulas subcutâneas onde secretam  alcaloides que em contato com a pele humana causam somente pequenas queimaduras na pele.
         Chamou atenção da imprensa internacional o apoio oferecido pelo presidente da república para que o ritual fosse consumado o mais rápido possível, tendo inclusive oferecido o transporte aéreo para levar o pajé até o pesquisador.
         Como ponte para compreender aquele interesse coletivo em torno da pajelança para salvar a vida do ornitólogo, seria bom relembrar a importância do pajé tupinambá no Brasil colônia.
         Existem várias expressões de origem tupi para designar o personagem que exercia durante os primeiros séculos da colonização portuguesa o domínio das práticas de curas entre os tupinambás. Stradelli reconhece o pajé como sinônimo de paié: ''É o médico, o conselheiro da tribo, o padre, o feiticeiro, o depositário autorizado da ciência tradicional. Pajé não é um qualquer. Só os fortes de coração, os que sabem superar as provas de iniciação, que têm o fôlego necessário para ser pajé''. Por outro lado, pagi, pay, payni, paié, paé, piaecé, piaché, pantché são variações de pajé, formadas etimologicamente por pa-yé, aquele que diz o fim ou profeta.
         A relevância social do pajé tupinambá pode ser entendida a partir das várias descrições dos agentes coloniais, entre séculos 16 e 18. A maior parte identificando-os como elementos de resistência à dominação; poucos, elogiando os saberes historicamente acumulados.
         O jesuíta José de Anchieta, um dos primeiros a olhar o pajé como feroz inimigo, escreveu: ''Já não ousas agora servir de teus artifícios, perversos feiticeiros, entre povos que seguem a doutrina de Cristo: já não podes com mãos mentirosas esfregar membros doentes...". Contrariamente, o médico Guilherme Piso, chefe dos Serviços Médicos das Índias Ocidentais, da comitiva de Maurício de Nassau, registrou: “Prescindem de laboratórios, ademais, sempre têm à mão sucos verdes e frescos de ervas. Rejeitam os remédios compostos de vários ingredientes, preferem os mais simples”. Ao retornar para a Holanda, após a expulsão dos holandeses, Piso levou consigo muitos remédios prescritos pelos pajés tupinambás, em especial as que evitavam as amputações dos pés, quase sempre seguidas da penosa morte pela infecção.

         A esperança de curar o imortal ornitólogo Augusto Ruschi com o sopro da pajelança estava justificada numa história de longa duração.