Amigos do Fingidor

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

A teoria da letra-poema ou de como e porque Bob Dylan ganhou – merecidamente! – o Nobel de Literatura 3/5


Zemaria Pinto


Para ilustrar a categoria letra-poema, vamos ler um fragmento de uma canção que você certamente já ouviu:

Caía
a tarde feito um viaduto
e um bêbado trajando luto
me lembrou Carlitos.

A lua,
tal qual a dona do bordel,
pedia a cada estrela fria
um brilho de aluguel...

E nuvens
lá no mata-borrão do céu
chupavam manchas torturadas...
Que sufoco!

Louco,
o bêbado com chapéu-coco
fazia irreverências mil
pra noite do Brasil.

O Bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc; este o poeta, aquele o músico. Dividimos arbitrariamente a letra-poema de Aldir em 9 estrofes, das quais reproduzimos as quatro primeiras. Em nenhuma delas o elemento surpresa se esconde, muito pelo contrário – se escancara. Na tarde que “cai feito um viaduto”, referência ao desabamento de um viaduto, em São Paulo, recente à época em que a canção foi gravada pela primeira vez, em 1979. A lua, comparada à dona de um bordel, pedia às “estrelas de programa”, um brilho qualquer, ainda que falso. Note que a aproximação da noite é triste, e as nuvens escondem “manchas torturadas”, uma alusão explícita à prática velada de tortura nos subterrâneos do regime que começava a agonizar. O bêbado, vestido de negro, desafia o sufoco e, louco, faz “irreverências” à noite que se abate sobre o país. O bêbado e a equilibrista, na voz de Elis Regina (1945-1982), virou emblema da luta pela anistia política, promulgada em agosto daquele ano.

Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações

Meu barracão no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje quando do sol a claridade
Forra meu barracão sinto saudade
Da mulher, pomba-rola que voou

Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda, qual bandeiras agitadas
Parecia um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros malvestidos
É sempre feriado nacional

A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas nos astros distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

Chão de estrelas, letra de Orestes Barbosa para música de Sílvio Caldas, gravada pelo próprio compositor em 1937, já nasceu poema, a começar pela forma. Suas quatro estrofes simétricas, de seis versos decassílabos cada, formando quatro sextetos, tem esquema rímico AABCCB. Mas a poesia de Chão de estrelas não está apenas na forma, que é pétrea mas não é eterna. Façamos uma leitura rápida da letra-poema de Orestes Barbosa.
O eu lírico é um poeta, que relembra uma época de felicidade, comparando sua vida com um palco, e a si próprio com um palhaço, iludido pelo sucesso efêmero. Na segunda estrofe, ele fala do motivo de sua tristeza: a mulher que o abandonara, comparada por ele ao som matinal dos pássaros. O morro emudeceu. A terceira estrofe dá uma nova ideia de como a vida para os dois era uma festa permanente, “sempre feriado nacional”, anunciado nas imagens evocativas do morro onde ambos moravam. A última estrofe traz aquele que Manuel Bandeira reputava como o mais belo verso da poesia brasileira: “tu pisavas nos astros distraída”. Observe que, a despeito do abandono, o poeta-cantor não perde a linha: apesar da extrema pobreza em que viviam, ele acreditava que a ventura de viver consistia em amar e cantar, à luz da lua – mas ela, a mulher-pássaro, não sabia disso. 


(Continua na próxima sexta-feira)