Amigos do Fingidor

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

A teoria da letra-poema ou de como e porque Bob Dylan ganhou – merecidamente! – o Nobel de Literatura 4/5


Zemaria Pinto


Letra poética. A letra poética não chega a ser um poema, porque sua existência só tem sentido aliada à música. Isto é, ela não se sustenta sozinha. A leitura pura e simples de uma letra poética não comove, não arrebata. Aliada à música, entretanto, a letra poética é valorizada, cresce e às vezes até nos confunde. Mas nem por isso seu valor é menor. Quer dizer, seu valor literário é menor, mas grandes clássicos da música brasileira têm letras que não são poemas extraordinários, mas nem por isso são menos belas, como A Felicidade, por exemplo, parceria entre Tom Jobim e Vinicius de Moraes:

A felicidade é como a pluma
que o vento vai levando pelo ar:
voa tão leve
mas tem a vida breve
precisa que haja vento sem parar

Paulinho da Viola, um dos maiores poetas da música brasileira, tem, em sua composição mais conhecida, um exemplo de letra poética, que não seria conhecida sem a extraordinária melodia que a envolve:

Ah, minha Portela
quando vi você passar
senti meu coração apressado
todo meu corpo tomado
minha alegria voltar...
Não posso definir aquele azul
não era do céu, nem era do mar
foi um rio que passou em minha vida
e o meu coração se deixou levar

Os exemplos são incontáveis. Só para ficarmos naqueles compositores citados mais acima, vamos enumerar canções que se encaixam nesta categoria. Chico Buarque: Carolina, Olé olá, Apesar de Você; Caetano Veloso: Menino do rio, Trilhos urbanos, Força estranha; Gilberto Gil: Domingo no parque, Refazenda, Drão; Paulinho da Viola: Tudo se transformou, Comprimido, Num samba curto.
Letra funcional. Manuel Bandeira, que teve muitos poemas musicados (poemas-letras), dizia que ao escrever letra interessava-lhe mais o efeito sonoro que o efeito literário. O velho mestre queria com isso dizer que a letra era uma função da música, por isso não podia sobrepô-la. Ele mesmo jamais publicou suas letras, escritas para parceiros ilustres como Jaime Ovalle e Heitor Villa-Lobos. Mas uma letra de Bandeira era e será sempre uma letra de Bandeira, não serve para ilustrar o que chamamos de letra funcional. Esta não é poética. Cumpre uma função emotiva/informativa, diretamente relacionada com a música. Sem a música, a letra funcional é prosaica. Vejamos um clássico da canção brasileira:

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida, eu vou te amar 
Em cada despedida, eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar

E cada verso meu será
Pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua, eu vou chorar
Mas cada volta tua há apagar
O que esta tua ausência me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida

A transcrição foi integral para que você não pense que estamos “escondendo” algo na letra de Vinicius, para a bela melodia de Tom Jobim. Se você ler o poema, sem a música, o que sobra? Uma lamúria monótona (quase digo uma cantilena, mas poderia ser mal interpretado), sem qualquer centelha de poesia. Mas é um clássico da música popular brasileira. Não há como dissociá-la da música que a envolve. As duas – letra e música – formam um todo indivisível, e é assim que ambas serão lembradas.


(Continua na próxima sexta-feira)