João Bosco Botelho
Possivelmente, a passagem de
Platão pelo Egito foi a responsável pelo resgate da lenda do deus egípcio Thot,
protetor dos escribas, inventor dos números e dos cálculos, para criticar a
substituição da memória oral já em curso naquele tempo na Grécia.
A divinização da memória, na
Grécia, fez-se por meio da deusa Mnemosine, que lembrava aos homens os seus
heróis e feitos, além de presidir a poesia lírica. A memória estava distribuída em funções
especificas pelo poeta, resgatando o passado com os cantores, e pelo adivinho,
prevendo o futuro. Estava intimamente associada com a vida e colocava-se como o
contrário do esquecimento, aqui entendido como o sinônimo da morte
desmemoriada. Desse modo, a memória também apareceu como um dom aos iniciados
nas doutrinas órficas e pitagóricas, ligadas à crença da metempsicose, na qual
a lembrança das vidas anteriores, um dos pontos angulares do orfismo, vencia o
esquecimento decorrente da morte e fazia renascer (reencarnar) com o
conhecimento acumulado da vida anterior, com o objetivo de buscar a perfeição.
O médico, até hoje, edifica a
sua relação com o paciente sobre a anamnese ou reminiscência, buscando, nas
informações prestadas pela memória do doente, os fatos que podem ajudar a
esclarecer o diagnóstico.
Não há mais dúvida que uma
parte dos saberes médicos presentes na cultura grega, representa o produto
sincrético do conhecimento dos povos, de regiões próximas, que antecederam a
formação da Grécia.
De acordo com a mitologia
grega, a Medicina começou com Apolo, filho de Zeus com Leto. Apolo é
reconhecido na literatura com dezenas de qualificações, além de deus curador.
Foi também identificado como Aplous, aquele que fala a verdade. O seu poder era
transmitido à água dos banhos que purificava a alma, e, por isso, era considerado
o deus que lavava e libertava o mal. De modo geral, o herói grego estava quase
sempre associado à arte de curar. Grande número de deuses e personagens da
mitologia grega tinham, entre seus atributos, o dom de curar doenças e feridas
de guerra.
Platão descreveu a necessidade
da nova postura do médico no livro Político:
“Estrangeiro: É interessante.
Dizem, com efeito, que se alguém conhece leis melhores que as existentes não
tem o direito de dá-las à sua própria cidade senão com o consentimento de cada
cidadão; de outro modo não.
Sócrates, o Jovem: Muito bem!
Não estarão eles certos?
Estrangeiro: Talvez. Em todo
caso se alguém dispensa esse consentimento e impõe a reforma pela força, que
nome se dará a esse golpe? Mas, espera. Voltemos primeiro aos exemplos
procedentes.
Sócrates, o Jovem: Que queres
dizer?
Estrangeiro: Suponhamos um
médico que não procura persuadir seu doente, senhor de sua arte, impõe a uma
criança, a um homem ou a uma mulher o que julga melhor, não importando os
preceitos escritos. Que nome se dará a essa violência? Seria por acaso o de
violação da arte e erro pernicioso? E a vítima dessa coerção não teria o
direito de dizer tudo, menos que foi objeto de manobras perniciosas ineptas por
parte de médicos que as puseram.
Sócrates, o Jovem: Dizes a
pura verdade.
Estrangeiro: Ora, como
chamaríamos aquele que peca contra a arte política? Não o qualificaríamos de
odioso, mau e injusto?”
Nunca é demais repetir esse
diálogo porque refletiu uma explosão coletiva de consciência, como as que
seguem as rupturas com o conhecimento acumulado, a ponto de refletir
precisamente a nova posição social assumida pelo médico, capaz de poder
interferir politicamente para modificar o conjunto social.