Amigos do Fingidor

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Poderes e conflitos na medicina grega



João Bosco Botelho

O papel político assumido pelo médico na polis grega como agente social para melhorar a saúde pública, e que possivelmente também se relacionou à busca do corpo perfeito, sem doença, está expressa em vários textos da Escola Médica de Cós, em especial nos de Políbio, o genro de Hipócrates.
 Sentida por vários autores, inclusive Platão, essa premência de ampliar o espaço social dos médicos foi deslocada pela nova organização social imposta pela urbanização dos hábitos sociais, quando a maior aglomeração de pessoas passou a exigir outras medidas para superar as novas dificuldades que foram aparecendo, como a linguagem exercendo papel extraordinário no convencimento pessoal e coletivo. De certo modo, a análise platônica interpretou o movimento das mentalidades na polis.
Essa posição valorativa dos médicos na Grécia do século 4 a.C., talvez como parte da ocupação dos espaços sociais, também alimentou outra situação: o conflito entre médicos e filósofos, apreendida de modo definitivo em Platão, pois ele adotou o modelo médico dos tempos homéricos e considerou o deus Asclépio o verdadeiro político da saúde, porque teria sido o inventor da Medicina, fazendo a releitura e recolocando o conflito da Medicina com a religião em evidência, ao mesmo tempo em que retirava a filosofia dessa área de atrito.
A interpretação é absolutamente coerente com a compreensão social platônica, ao dividir a sociedade em dominadores e dominados, senhores e escravos, tudo pela vontade dos deuses. Se a sociedade era estratificada, obrigatoriamente, as especialidades sociais que a serviam teriam que ser do mesmo modo. Assim, ele incorporou na sua filosofia as práticas médicas diferenciadas entre os senhores e escravos, ricos que podem ficar doentes e pobres que não têm tempo para adoecer, existente mais de um milênio antes da polis grega e que foram legisladas por Hamurabi.
Platão ao ligar-se mais fortemente à Medicina na magistral obra “Górgias”, deixou bem claro o papel que o agente da cura, o médico, pode desempenhar na relação com o paciente, na dependência da compreensão do sofrimento, quando o doente o procura para refazer a saúde comprometida. Isso porque quando a pessoa enferma vai ao encontro de um médico buscando ajuda, ela o faz movida pela necessidade de interromper a dor, o desconforto e, também, atraído pela complexa malha de confiança que o liga historicamente ao poder do conhecimento do médico. Este, por sua vez, pode agir como os médicos dos escravos, assumindo a posição tirânica frente à fragilidade do doente ou como os que tratavam os homens livres que, além de buscarem a origem das doenças, ensinavam ao paciente a melhor maneira de tratá-las.
É evidente que o platonismo exerceu decisiva importância sobre o atual pensamento ocidental em relação à saúde e à doença. Foi graças à dicotomia corpo-alma do platonismo que foi atenuada parte do avanço proporcionado pela dessacralização da doença, embutida na teoria dos Quatro Humores  – primeiro corte epistemológico da Medicina –, pela primeira vez construindo a saúde e a doença fora do poder dos deuses e deusas, iniciada na Escola de Cós, com a publicação de Políbio, o genro de Hipócrates. 
Dessa forma, acabou predominando no pensamento coletivo da grande tradição herdada das sociedades ágrafas e dos tempos homéricos, que valorizava a origem divina das doenças e o poder da divindade para curar, presente nas mentalidades até hoje.