João
Bosco Botelho
O papel político assumido pelo médico na polis
grega como agente social para melhorar a saúde pública, e que possivelmente
também se relacionou à busca do corpo perfeito, sem doença, está expressa em vários
textos da Escola Médica de Cós, em especial nos de Políbio, o genro de
Hipócrates.
Sentida
por vários autores, inclusive Platão, essa premência de ampliar o espaço social
dos médicos foi deslocada pela nova organização social imposta pela urbanização
dos hábitos sociais, quando a maior aglomeração de pessoas passou a exigir outras
medidas para superar as novas dificuldades que foram aparecendo, como a
linguagem exercendo papel extraordinário no convencimento pessoal e coletivo. De
certo modo, a análise platônica interpretou o movimento das mentalidades na
polis.
Essa posição valorativa dos médicos na Grécia
do século 4 a.C., talvez como parte da ocupação dos espaços sociais, também
alimentou outra situação: o conflito entre médicos e filósofos, apreendida de
modo definitivo em Platão, pois ele adotou o modelo médico dos tempos homéricos
e considerou o deus Asclépio o verdadeiro político da saúde, porque teria sido
o inventor da Medicina, fazendo a releitura e recolocando o conflito da Medicina
com a religião em evidência, ao mesmo tempo em que retirava a filosofia dessa
área de atrito.
A interpretação é absolutamente coerente com a
compreensão social platônica, ao dividir a sociedade em dominadores e
dominados, senhores e escravos, tudo pela vontade dos deuses. Se a sociedade
era estratificada, obrigatoriamente, as especialidades sociais que a serviam
teriam que ser do mesmo modo. Assim, ele incorporou na sua filosofia as
práticas médicas diferenciadas entre os senhores e escravos, ricos que podem
ficar doentes e pobres que não têm tempo para adoecer, existente mais de um
milênio antes da polis grega e que foram legisladas por Hamurabi.
Platão ao ligar-se mais fortemente à Medicina
na magistral obra “Górgias”, deixou bem claro o papel que o agente da cura, o
médico, pode desempenhar na relação com o paciente, na dependência da compreensão
do sofrimento, quando o doente o procura para refazer a saúde comprometida.
Isso porque quando a pessoa enferma vai ao encontro de um médico buscando
ajuda, ela o faz movida pela necessidade de interromper a dor, o desconforto e,
também, atraído pela complexa malha de confiança que o liga historicamente ao
poder do conhecimento do médico. Este, por sua vez, pode agir como os médicos
dos escravos, assumindo a posição tirânica frente à fragilidade do doente ou
como os que tratavam os homens livres que, além de buscarem a origem das
doenças, ensinavam ao paciente a melhor maneira de tratá-las.
É evidente que o platonismo exerceu decisiva
importância sobre o atual pensamento ocidental em relação à saúde e à doença.
Foi graças à dicotomia corpo-alma do platonismo que foi atenuada parte do
avanço proporcionado pela dessacralização da doença, embutida na teoria dos
Quatro Humores – primeiro corte epistemológico
da Medicina –, pela primeira vez construindo a saúde e a doença fora do poder
dos deuses e deusas, iniciada na Escola de Cós, com a publicação de Políbio, o
genro de Hipócrates.
Dessa forma, acabou predominando no pensamento
coletivo da grande tradição herdada das sociedades ágrafas e dos tempos
homéricos, que valorizava a origem divina das doenças e o poder da divindade
para curar, presente nas mentalidades até hoje.