Amigos do Fingidor

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A teoria da letra-poema ou de como e porque Bob Dylan ganhou – merecidamente! – o Nobel de Literatura 5/5



Zemaria Pinto


Outro clássico: Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro, o Braguinha. Canção que emociona há muitas décadas, pois foi gravada pela primeira vez no mesmo ano de Chão de estrelas, a bem da verdade, é uma canção muito mais “atual”, “moderna”, que aquela, com sua romântica e envelhecida ideologia do bom malandro. Carinhoso, ao contrário, tem linguagem simples e uma melodia cativante, que qualquer frequentador de barzinho sabe levar. Mas a letra de Carinhoso...

Meu coração
Não sei porque
Bate feliz
Quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim
Foges de mim

Ai, se tu soubesses como eu sou tão carinhoso
E o muito, muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim
Vem, vem, vem, vem, vem sentir o calor
Dos lábios meus
À procura dos teus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim então
Serei feliz
Bem feliz

É uma letra funcional. Sem a envolvente melodia de Pixinguinha, é apenas um amontoado de clichês. A exceção poética – “e os meus olhos ficam sorrindo” –, não sustenta o todo, coroado pelo imperdoável “vem matar esta paixão / que me devora o coração”. Tenho vontade de pedir desculpas ao Braguinha, mas resta-me o consolo de reconhecer que a extraordinária composição do mestre Pixinguinha fica mais gostosa quando acompanhada pela letra funcional do mestre Braguinha. E só por curiosidade: a gravação original, de 1937, cantada por Orlando Silva, tem 02min46seg de duração, dos quais exatos 01min24seg – mais da metade – são ocupados com a introdução, orquestrada.
O caso Vinicius de Moraes. Poeta reconhecido desde 1935, quando lançou seu segundo e premiado livro de poesia, Forma e exegese, Vinicius teve vários poemas usados como letras antes de se tornar compositor quase que em tempo integral, exatos 20 anos depois, ao compor uma série de canções de câmara em parceria com o maestro amazonense Cláudio Santoro. No ano seguinte, iniciava a parceria com Antônio Carlos Jobim, dando vida à peça que viraria filme vencedor do festival de Cannes e do Oscar de filme estrangeiro, em 1959: Orfeu negro. A parceria com Jobim resultaria ainda no disco seminal da Bossa Nova – Canção do amor demais, na voz da “divina”, como Vinicius a chamava, Elizeth Cardoso (1920-1990). Esse disco abria com “Chega de saudade”, marcada pela estranha batida de um novo violonista: João Gilberto. Inquieto, em 1962 iniciou a parceria com Baden Powell, que nos legou afro-sambas antológicos, como “Berimbau” e “Canto de Ossanha”, além do delicioso “Samba da benção”. Outros parceiros vieram, ora com mais ora com menos frequência: Edu Lobo, Francis Hime, Chico Buarque, até o definitivo Toquinho.  Poeta lírico por excelência, uma análise da obra musicada de Vinicius de Moraes é campo fértil para demonstrar nossa raquítica teoria. Não é esse o nosso objetivo. Entretanto, vamos deixar pistas, para que o leitor possa exercitar-se, confirmando ou discordando da nossa teoria da letra-poema:

•   Poemas-letras: Poema dos olhos da amada, Soneto de separação, Soneto de fidelidade, A arca de Noé, A casa, Rosa de Hiroshima;
•   Letras-poemas: Serenata do adeus, Marcha da quarta-feira de cinzas, O que tinha de ser, Para viver um grande amor, O filho que eu quero ter, Bom dia, tristeza, Valsinha;
•   Letras poéticas: Minha Namorada, Sabe você, Pau-de-arara, Cotidiano Nº 2, Regra três, Menininha;
•   Letras funcionais: Só danço samba, O nosso amor, Garota de Ipanema, Amor em paz, Maria vai com as outras, Onde anda você?

Letra ordinária. Não, não nos esquecemos, leitor. Temos certeza que você não terá dificuldade em reconhecer a letra ordinária. Não precisa muito esforço. Basta ligar o rádio. Aliás, se fôssemos representar nossa teoria numa pirâmide quantitativa, muito parecida com aquela que vimos nas primeiras páginas deste livro, provavelmente ela ficaria assim.
Pirâmide representativa da provável quantidade de letras, por categoria.

               O poema-letra é uma exceção. Por outro lado, a letra-poema é mais rara que a letra poética, enquanto que a letra funcional constitui um universo muito maior que ambas. A letra ordinária, entretanto, domina, especialmente porque está ligada, qualitativamente, ao tipo de música que a veste. Música de má qualidade, letra do mesmo nível. Mas isso não deve ser motivo de queixa. São as leis de mercado. Só não precisamos submeter nosso discernimento a elas.

FIM