Amigos do Fingidor

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Borges & Borges ou o enigma do outro

Zemaria Pinto
Jorge Luis Borges, por Cameron Stewart.
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Navegando pelas ondas por vezes tediosas da Internet, deparei-me, dia destes, com uma notícia fantástica: dois homens armados assaltaram uma biblioteca pública na periferia de Buenos Aires e roubaram todos os exemplares ali disponíveis dos livros escritos por Jorge Luis Borges − cerca de 50 volumes.

Os ladrões levaram também 33 exemplares de livros escritos por Borges em parceria com Adolfo Bioy Casares. Pela avaliação do diretor da Biblioteca, os livros eram velhos e não contavam entre eles nenhuma edição rara, não tendo praticamente nenhum valor de revenda. Para trás, os assaltantes deixaram computadores, aparelhos de TV e de vídeo, além de enciclopédias novas e caras.

O fantástico dessa historinha é que ela parece saída das páginas de um livro do próprio Borges, o mais importante autor de língua espanhola do século XX.

Nascido na Argentina a 24 de agosto de 1899, Borges foi menino-prodígio, escrevendo contos e aprendendo línguas antes mesmo de ir para a escola. Aos 15 anos, a família muda-se para a Suíça, deixando o jovem Borges mais próximo do esplendor europeu.

De volta à Argentina, publica, em 1923, seu primeiro livro, Fervor de Buenos Aires, com o qual inicia uma carreira que o transformaria em verdadeiro mito.

Espelhos, labirintos, tigres, punhais e o interminável rio de Heráclito são algumas das imagens recorrentes de Borges. Alguns de seus melhores contos são narrados na primeira pessoa, identificando-se ele próprio como o narrador, como se contasse suas memórias. Borges inventava livros e contava histórias sobre esses livros.

Chegou mesmo a inventar um país e um mundo e toda uma bibliografia a respeito. Em Borges, a fronteira entre ficção e ensaio é tão tênue que Antônio Paulo Graça, no ensaio “As Afinidades Ilusórias”, diz que ele revogou, dinamitou a idéia de sujeito.

Cego aos 56 anos, Borges tinha humor e paixão suficientes para viver unicamente em função da literatura, mesmo impedido de ler e escrever. Umberto Eco homenageou-o como o bibliotecário Jorge, de O Nome da Rosa, que, a despeito da cegueira, era o guardião de todos os livros e autor de todas as tramas...

Perguntado, uma ocasião, em uma praça, se era mesmo Borges, respondeu, irônico: − às vezes... No conto “O outro”, de O Livro de Areia, o velho Borges encontra-se com um incrédulo jovem Borges que o sonhava naquele instante, a quem o velho aconselha, sem melancolia:

− Quando alcançares a minha idade terás perdido a visão quase por completo. Verás a cor amarela, sombras e luzes. Não te preocupes. A cegueira não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão.

No poema “Arte Poética”, ele sentencia:

Às vezes, pelas tardes, uma cara
Nos olha lá do fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nossa própria cara.

Em abril de 1985, Borges despede-se dos amigos argentinos e parte para sua última viagem à Europa. Em junho do ano seguinte, ele morre na mesma Suíça de sua adolescência.

O poeta Thiago de Mello, que fez com o autor de O Aleph, História Universal da Infâmia, Ficções e O Livro dos Sonhos, entre tantos outros, duas grandes entrevistas, poucos anos antes de sua morte, tem uma opinião definitiva e borgeana sobre ele:

− Borges não existe. Desconfio que ele não passa de uma invenção dele próprio. Ele construiu – dia a dia –, com os seus poemas, contos e ensaios, um fascinante labirinto, em cujo pátio de palavras e estrelas deixou gravadas as leis que regem o destino da natureza humana.