Amigos do Fingidor

domingo, 26 de abril de 2009

Novo relatório para a academia ou eu, pusilânime
Zemaria Pinto, après Franz Kafka
Franz Kafka (1883-1924) escreveu Relatório para a academia, inserido na coletânea de contos Um médido rural (1920).
Ilustração: Peter Kuper

Excelentíssimos senhores acadêmicos:

Muitos anos se passaram desde meu primeiro relatório a esta academia, quando comuniquei minha experiência simiesca e metamorfose à humana condição, o que me permitiu pleitear a qualidade de membro deste silogeu, para o qual fui eleito não sem muita polêmica.

A minha condição primata afastou concorrentes humanos, que seriam certamente melhores representantes que eu – mas não representantes simiescos. Obtive uma rejeição de 25%, recorde logo quebrado na eleição seguinte, quando um humano de prestígio internacional, igualmente candidato único, foi rejeitado por 30% de meus pares – entre os quais não me incluí, pois considerava o pleiteante digno de todas as honrarias. A partir desse fato, rejeição deixou de ser um trauma para mim.

A verdade é que as eleições da academia, das quais já participei de meia dúzia, são sempre muito disputadas: se dois candidatos se apresentam, será eleito aquele que obtiver 50% mais um dos votos, o que não deve ser entendido que a rejeição a esse candidato seja de 50% menos um dos votos. Assim, quero dar meu testemunho pessoal e intransferível sobre a mais recente eleição, talvez a mais disputada e certamente a mais tumultuada de todas as que pude observar mais de perto.

Havia dois candidatos humanos. O grupo de votantes aptos dividiu-se na preferência entre esses dois candidatos. De um lado, o grupo com o qual me identifico, afeito às tertúlias filosóficas e literárias – que não ajudam a melhorar a humanidade mas nos divertem bastante – optou pelo candidato cuja obra tem um cunho humanista bem definido. O outro candidato, ligado à esfera política do governo provincial, onde gravita o outro grupo, sob a liderança inconteste do acadêmico-mor, tem vasta obra de cunho técnico-científico – versando sobre assuntos tão complexos e diversos, como física molecular e astronomia quântica – cuja precisão e profundidade eu não tenho conhecimentos mínimos para mensurar. Vamos chamá-los, didática e respectivamente, de candidatos A e Z, identificando os grupos pelas mesmas letras: a separação entre estas dá bem a dimensão da distância ética entre a prática de um e de outro grupo.

Não entrarei em detalhes quanto a provocações, vilanias e traições. Fiquemos na superfície, no que pôde ser visto a olho nu – ainda que com meus simiescos olhos, acostumados desde sempre às ciladas e armadilhas da selva selvagem, mesmo sob a negridão da noite mais absoluta.

Avocando a custódia dos votos enviados pelo serviço postal, de acadêmicos que por um ou outro motivo não poderiam estar presentes no dia do sufrágio, o acadêmico-mor jogou terra nos olhos de todo o meu aprendizado sobre democracia, pluralismo e diversidade. Sua ação lembrou-me, sem nenhuma melancolia, meus tempos irracionais, submetido pela força de um antropoide que ocuparia a liderança do grupo até achar outro que o derrotasse na luta corporal, e ao qual, se sobrevivesse, haveria de se submeter.

Até o dia da eleição, cerca de 40% dos votos possíveis chegaram pelo serviço postal. Neste ponto, chamo a atenção ao título alternativo deste humílimo relatório: a minha pusilanimidade. Sim, no início da apuração, observei que os envelopes com as cédulas eleitorais, que deveriam estar, cada um deles, dentro de um envelope com selos e carimbos do serviço postal, devidamente lacrado, estavam nus – como um bando de macaquinhos na floresta. A desconfiança desabou sobre mim, fulminante. Era tudo muito simples: se o acadêmico-mor tinha liberdade para abrir os envelopes do serviço postal, poderia também trocar os pequeninos envelopes com as cédulas, que não tinham nenhuma identificação, alterando o resultado em detrimento da vontade da maioria. Se eu na hora em que percebi aquela possibilidade houvesse exposto aos presentes a minha suspeição, o acadêmico-mor certamente esbravejaria argumentando com sua condição incontestável de magistrado etc. etc. Mas aí, como em qualquer plenária de pessoas livres, a discussão estaria instalada e certamente o meu grupo pediria a anulação dos votos e mesmo o cancelamento de todo o processo eleitoral. Talvez até se sugerisse, por sua ação contrária ao senso comum, o impeachment do acadêmico-mor. Claro que tudo são suposições. A única certeza é a minha dúvida.

Enfim, pela minha omissão pusilânime, o candidato Z foi eleito por uma maioria de dois votos – exatamente 50% mais um dos votos válidos. Após a proclamação do resultado não houve qualquer comemoração. Do ponto de vista político, entretanto, é preciso reconhecer que o sodalício saiu fortalecido. Afinal, parece que é para isso que se prestam as academias, desde Richelieu. Penitencio-me, entretanto, perante vossas excelências, por me sentir um corpo estranho, literalmente, no interior da academia: neste episódio, agi como um símio. Provei a mim mesmo que não perdi minha condição primordial. Duvido até que mereça pertencer a esta academia.

Era o que eu tinha a informar.

Cardeal de Richelieu (1585-1642), modelo-mor de acadêmico, por Philippe Champaigne (1602-1674).