Amigos do Fingidor

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

As metamorfoses de Danielle Mariam

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Zemaria Pinto*


A essência da poesia é a linguagem. Mas a linguagem da poesia não é essa que frequenta as mesas cotidianas. A linguagem da poesia é feita de estranhamentos – aquilo que soa estranho à expressão comum. Não existe, porém, uma linguagem poética padrão. Cada poeta cria sua própria maneira de expressar-se. E aí reside a beleza e a complexidade da poesia: a transformação da linguagem realiza-se nos mais diversos níveis – imagem, som, ritmo, ou na harmonização disso tudo, o que Pound chamou de “a dança do intelecto entre as palavras”, o prazer estético-sensorial que um poema, um bom poema, provoca.

Metamorfose, primeiro livro dessa quase menina, mas senhora poeta, Danielle Mariam, não poderia ter melhor título, pois mostra as diversas fases porque passou a autora – de uma poesia ainda insegura, juvenil, até o amadurecimento, em que se vislumbra não mais uma promessa, mas a certeza de termos uma nova poeta, plena de humor e lirismo, pronta para inscrever seu nome entre os mais representativos da poesia amazonense.

Não pretendo aqui fazer uma abordagem profunda do livro, até porque não é essa a função do apresentador. Mas como um mestre-de-cerimônias calejado, quero dar uns toques ao leitor, fazendo uma breve viagem no trabalho de Danielle. E começo pelo fim, pois o livro é dividido em quatro partes. “Fronteiras” fala da relação da autora com este país das Amazonas, que ela vive com tanta intensidade. Observe o leitor o que é a transformação da linguagem, lendo atentamente o poema “Mãos da Beira do Rio”. Feche os olhos e imagine as mãos ali descritas. São mãos de um Atlas caboclo.

A terceira parte, “Escárnio”, traz uma boa dose de humor, mas um humor amargo, que não sorri para si mas para os outros, para chamar a atenção. Observe nos poemas “O moço, a moça” e “Chá” como a transformação da linguagem se dá no mix entre imagem, som e ritmo.

Em “Sintonia”, a segunda parte do livro, observa-se ainda esse humor amargo, de resto uma característica da poesia de Danielle, porém voltado para si mesmo, rindo de si mesmo, o que é um exercício muito difícil, porque o poeta, escrevendo na primeira pessoa, assume a face aparente de suas personagens. Isso Danielle explica com bastante clareza no texto que abre essa parte: “A Poesia”. Poemas como “Meus Demônios”, “Esquina”, “Só”, “Certos Olhos”, “A Janela”, “Sermão” e “Mulher” revelam o grau de amadurecimento e o domínio da linguagem (melhor dizendo, das metamorfoses da linguagem) a que chegou Danielle Mariam.

Finalizando a nossa leitura invertida, a primeira parte do livro, “Poesia Visceral”, escancara um erotismo e uma sensualidade até aqui não ousados na comportada poesia, digamos assim, feminina do Amazonas. Não em livro, pelo menos. Citar um ou outro poema parece demonstração de preferência. Não. Todos os textos citados o foram por alguma razão, para a qual se chamava a atenção do leitor. Mas se você não quiser ler de trás para frente como eu sugeri, leia o primeiro poema, “Neblina”, e entenda o que eu quis dizer com transformação da linguagem, estranhamento, amadurecimento etc.

Agora, leitor, dê-me licença, para eu contar uma historinha à Dani. Em 81, 82, por aí, quando o poeta Thiago de Mello voltou do exílio, fomos apresentados e trocamos figurinhas durante um tempo. Depois nos perdemos de vista, que esse mundo é grande assim para que o reencontro tenha mais calor. Há uns três anos, ao rever o velho Thiago, mostrei-lhe os originais do meu segundo livro. Ouvi dele então uma frase que me tocou profundamente: que bom que você continua poeta! Minha cara Dani, conheço-a já há cinco anos – que bom que você continua poeta!


(*)Escrito em 1998 como apresentação ao livro Metamorfose, de Danielle Mariam, que continua inédito. Ex-secretária municipal de Educação de Manacapuru, Danielle hoje é diretora de uma escola estadual na zona rural daquele município, e mestranda em Ciências do Ambiente, pela UFAM. E desconfio que continua poeta.