Amigos do Fingidor

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Milagre como prática de cura: do incognoscível ao conhecimento

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João Bosco Botelho

No mundo dos seres vivos, como em toda a parte, se trata sempre de explicar o visível complexo, pelo invisível simples. Mas nos seres, como nas coisas, é uma invisibilidade em encaixes. Não há uma só organização dos seres vivos, e sim uma série de organizações embutidas, umas nas outras, como bonecas russas. Atrás de cada uma se esconde a outra.
(François Jacob)


Constitui um equívoco associar o milagre somente ao cristianismo. A convivência dos homens e mulheres com os fatos extraordinários — os milagres — materializados a partir das vontades divinas, nos quatro cantos do planeta, constitui história de longa duração.

Os cultos terapêuticos dos povos que habitaram as terras férteis, nas margens do Indo, do Nilo e da Mesopotâmia, eram fortes nas relações sociais e muito utilizados por ricos e pobres. Naquelas culturas, os registros mais antigos, alguns com 4.000 anos, a doença era compreendida, invariavelmente, ligada ao pecado e à ação dos deuses e deusas maus.

A cura de natureza religiosa, operada pelos sacerdotes, intermediários da vontade divina, era obtida quando o curador identificava e expulsava o deus mau do corpo doente, com a ajuda de rezas e ritos de purificação. Na Mesopotâmia, no reinado de Hammurabi, alguns registros em escrita cuneiforme identificam com a mesma palavra a doença e o pecado.

Os panteões daqueles povos estavam repletos de divindades taumaturgas. Entre as mais famosas figuram o deus Mitra, celebrado em muitos templos espalhados no Egito, e Asclépio, adorado em belas edificações no mundo grego antigo, especialmente, em Epidauro, na ilha de Cós. Em ambos os casos, durante centenas de anos, muitos peregrinos se dirigiram aos santuários à procura da cura milagrosa.

É no Antigo Testamento, notadamente no Pentateuco, que o milagre apareceu como “sinal”, ligado à fé monoteísta, em contraposição ao politeísmo dominante. O fundamento da fé, para a liturgia judaica, não é o simples milagre, mas sim a Criação como a existência concreta e estrutura da moral. O ato criador, essencialmente divino, concretizou-se acima de todas as leis da natureza, sendo o primeiro e o mais importante de todos os sinais. Assim, Iahweh estabeleceu o ritmo das estações (Ge 8, 22), o curso das estrelas (Sl 148, 6), o movimento dos mares (Jó 38, 10), as leis do céu (Jó 38, 33) e as da terra (Jr 33, 25).

A herança do judaísmo observa duas tendências na interpretação dos milagres. A primeira admite a Bíblia plena deles, devendo constituir fonte de reflexão à pequenez do homem. A segunda está relacionada com as interpretações místicas do judaísmo contidas no Zohar, o livro dos Esplendores, escrito em torno do século 12, na Espanha. Nessa, os rabinos não aceitaram a necessidade do sinal porque existiria harmonia absoluta entre o Criador e a sua obra.

A tradição semita também compreendeu a enfermidade como castigo pelas faltas cometidas contra a Lei (Ex 4, 6) e a saúde ligada à intervenção divina (Sl 38, 2 6).

Os primeiros padres construíram fantástica reelaboração teórica dos sinais referidos no AT. Os milagres de Cristo, descritos pelos quatro evangelistas, assumiram grande importância na apologética da nova religião.

São Tomas de Aquino, um dos mais importantes teólogos da cristandade, compreendeu a importância do milagre estruturado na fé como “fato extraordinário produzido por Deus”. Dessa forma, os anjos bons e os santos poderiam ser instrumento na promoção dos acontecimentos situados à margem das leis naturais. Por outro lado, distinguiu o milagre do prodígio. Esse último, simples simulacro, não era fruto do poder divino.

Estabelecendo o juízo de valor, o tomismo dividiu o milagre em duas categorias: absolutos ou de primeira ordem e relativos ou de segunda ordem. Só o primeiro seria verdadeiro, porque superando, em si mesmo, todas as concepções da natureza criada, só Deus seria o autor. O relativo, ao contrário, poderia ser determinado por meio de outras forças sensíveis ligadas ao demônio.

O milagre apologético, sempre de primeira ordem, deve ser perceptível e confirmar a origem divina da revelação. Esse milagre como instrumento de louvor, assume enorme importância na catequese pela própria natureza, porque é capaz de mudar a forma dos corpos, curando a doença como mal. Logo, a cura de uma doença, considerada mortal, pode ser entendida como milagre e sinal de Deus, justificando a consagração.

A abordagem do tomismo foi criticada por Voltaire e Renan, ao argumentarem que, sendo as leis naturais, criadas por Deus, absolutamente coerentes, é falso supor que possa existir qualquer ação física contrária a elas.

Spinoza, de modo semelhante, recusou a existência do milagre apoiado na premissa de que a criação não tendo sido livre, mas feita pela necessidade da sua natureza transcendente, era impossível a intervenção extraordinária para mudar o rumo.

Outra oposição ao sinal está implícita no agnosticismo kantiano, firmado contra o determinismo absoluto. De acordo com Kant, não existem leis fixas e constantes, porque a estabilidade provém exclusivamente do nosso aspecto subjetivo de compreender a realidades. Um fato é incognoscível porque não temos como distinguir todas as expressões da natureza.

A resistência contra a natureza divina do sinal contribuiu, de certa forma, para o milagre perder o valor ontológico e o argumento apologético, conservando somente o aspecto simbólico da fé.

Com o intuito de reforçar o conjunto do questionamento, é possível relembrar a imutabilidade de algumas leis matemáticas regendo a essência da coisa e expressando o modo de ser. Assim, em nenhuma hipótese, nem por milagre, o triângulo poderá deixar de ter os três ângulos.

Por outro lado, se considerarmos a validade absoluta das leis regendo as relações físicas entre as coisas, hoje compreendidas a partir das três forças – gravitacional, eletromagnética e nuclear – os acontecimentos situados fora dessas leis, estariam obrigatoriamente contidos em outra manifestação, ainda desconhecida, da natureza invisível. Assim, o milagre, compreendido como sinal, sempre visível (é impossível apreender o milagre invisível), obrigatoriamente, teria de contrapor o natural: o fogo não queimar, o homem morto voltar à vida ou o enfermo incurável recuperar a saúde, numa fração de segundo. Em absoluta discordância, a leitura kantiana defende que essas manifestações podem estar evidenciando os aspectos incognoscíveis da matéria.

Os pressupostos de Kant e Spinoza podem auxiliar para entender os mecanismos produtores da doença como expressões da vida em profundo dinamismo com a totalidade transformadora. O gradual conhecimento, processado fora do espaço sagrado, continua servindo de estímulo para continuar a caminhada para decompor a complexidade do invisível aos olhos desarmados.

Na mesma esteira teórica, a inquestionável aceitação do milagre, como ato de contemplação pura, pode representar forte barreira ao avanço dos saberes e, ao mesmo tempo, desafio à unicidade divina, fato que não é pressupostamente o desejo de Deus, já que a inteligência humana é dádiva divina. Contudo, se o milagre for entendido como obra de Deus com o intuito de desafiar a compreensão humana para desvendar o invisível aos olhos, poderá manter o caráter apologético e, ao mesmo tempo, festejar a inteligência.

As pessoas crentes, alimentadas pela formidável herança historicamente acumulada, continuam buscando milagres, especificamente, nas doenças ainda incognoscíveis, naquelas que aguardam o melhor e mais convincente desvendar, como nas doenças comportamentais e imunomoduladas e em muitos tipos de cânceres. No outro lado, quando o medo da morte antecipada de um ente querido está contido na amigdalite infecciosa, que no passado recente, antes dos antibióticos, determinou a morte prematura de incontáveis doentes ou o outro com o osso do braço fraturado na queda da própria altura, não há dúvida: o melhor tratamento é o atendimento do médico no pronto-socorro mais próximo.

As sociedades, no passado e no presente, amparadas pelas necessidades coletivas complexas — vencer o medo da dor e da morte prematura —, organizaram com competência o espaço sagrado das divindades taumaturgas. No Ocidente cristianizado, durante o medievo, os santuários curadores de Jerusalém e Compostela receberam incontáveis peregrinos na busca de milagres. Na atualidade, os de Fátima e de Lourdes, são os mais procurados pelos que sofrem o medo desesperador da doença incurável. Mais recente, surgiu o de Medjugorje, na Iugoslávia. Os três sítios conseguem estruturar expressões de fé no milagre apologético, justificando a santidade do sinal na convicção dos fiéis quanto à materialização circunstancial e imprevisível da Virgem Maria.

Para evitar os excessos dos fiéis bem intencionados, foi criado, em 1882, uma comissão formada de médicos e religiosos, para analisar a veracidade dos sinais relatados em Lourdes. Apesar das milhares de curas descritas pelos peregrinos, a igreja católica anunciou, em 1989, a ocorrência do 65º milagres. O caso excepcional, não explicado pela ciência, é de uma jovem siciliana de 25 anos, portadora de uma forma incurável de câncer ósseo no joelho. Em 1976, depois de ela permanecer uma semana próxima do santuário, um ano depois, houve o completo desaparecimento da lesão.

Parece existir complexa associação entre o sentimento de fé que envolve o crente peregrino e a influência da religião dominante em determinado grupo social. No Brasil, nos estratos sociais abastados, são mais enfocadas as procuras de Lourdes, Fátima e Medjugorje. Porém, os mais pobres, a maior parte da população, quando tocada pela angústia do medo da morte prematura, procuram outros locais de peregrinação, como a basílica de Aparecida, a estátua do Padre Cícero, os centros de umbanda, as igrejas protestantes e grupos kardecistas, agregados aos componentes de fé e religiosidade semelhantes.

Nos últimos trinta anos, as muitas igrejas neopentecostais, ao utilizarem na catequese o milagre como prática de cura, conseguiram obter maior chamamento de conversão e estão ameaçando o catolicismo apostólico romano. A perda do monopólio do milagre, como prática terapêutica institucionalizada, tem preocupado seriamente as autoridades eclesiásticas romanas. O tema já foi abordado pelo Sínodo Extraordinário dos Bispos, pela XX Assembléia do CELAN, em São José da Costa Rica, em março de 1985 e expressado claramente no Observatório Romano (Jornal Oficial do Vaticano), em 29 de junho de 1986: "Numerosas deficiências ou insuficiências de adaptabilidade na vida da Igreja... podem tornar mais fácil o sucesso das seitas."

É possível que a crença no milagre apologético exceda a religião organizada. A fé que forma e guarda o sinal, ajusta a sedução na eficiência simbólica dos ritos envolvendo palavras, gestos e objetos metamorfoseados na temporalidade dos processos de organização social, esperando que sejam trazidos do incognoscível ao conhecimento.